quinta-feira, julho 26, 2012

BESA lança nova edição do maior concurso de fotografia de Angola.

BESA lança nova edição do maior concurso de fotografia para fotógrafos de nacionalidade angolana - Inscrições abertas para 5º Edição do BESAfoto

Inscrições abertas para 5º Edição do BESAfoto


O Banco Espírito Santo Angola (BESA) vai realizar a quinta edição do maior concurso de fotografia de Angola, que conta com a colaboração da prestigiada organização internacional World Press Photo. As inscrições para o BESAfoto 2012 estão abertas até 28 de Setembro e dirigem-se a fotógrafos profissionais e amadores angolanos, onde quer que estejam a viver. Inserido no projecto BESAcultura, este concurso de fotografia anual visa promover e desenvolver os artistas e a cultura angolana.

O BESA, através do seu projecto BESAcultura, pretende premiar e impulsionar a obra dos melhores fotógrafos angolanos, identificando trabalhos de mérito e, também, dando espaço à descoberta de novos talentos. As fotografias apresentadas a concurso serão avaliadas tendo em conta a sua capacidade de contar uma história, o seu impacto visual e a competência técnica, expressa pelos autores. Os vencedores do concurso BESAfoto receberão:

1º Prémio – 7 500 USD (valor equivalente em Kwanzas) + equipamento fotográfico

2º Prémio – 5 000 USD (valor equivalente em Kwanzas) + equipamento fotográfico

3º Prémio – 2 500 USD (valor equivalente em Kwanzas) + equipamento fotográfico

Criado em 2008, pelo Banco Espírito Santo Angola, com o objetivo de destacar a fotografia como uma das mais completas formas de expressão, o BESAfoto, depressa se posicionou como o maior concurso de fotografia em Angola e um dos maiores em África.

A edição de 2011 foi a mais concorrida de sempre, com mais de mil e quinhentos trabalhos. Aliás, em cada ano, o número de artistas a concurso é cada vez maior, um reconhecimento inequívoco do trabalho que o banco está a desenvolver na promoção da arte e da cultura angolana, e também um reflexo do crescimento do movimento artístico nacional. A World Press Photo foi responsável pela selecção e coordenação do júri do concurso, bem como pela definição dos critérios de avaliação dos trabalhos.

Lisbon Communication Office:

Ana Paula Salgueiro
Tel: + 351 21 387 08 13
TM: + 351 93 396 64 29
apsalgueiro@lisboncommunicationoffice.com

Teresa Nogueira
Tel: +351 21 384 00 79
TM: +351 93 303 93 93
teresa.nogueira@lisboncommunicationoffice.com

sábado, julho 07, 2012

Valley of the Shadow of Death (1855).


Roger Fenton (1819 - 1869)

Se todas as guerras são estúpidas e absurdas, a Guerra da Crimeia (1853-1856) foi particularmente estúpida e absurda. E, no meio dessa guerra estúpida e absurda, o sangrento episódio da Carga da Brigada Ligeira (1854) foi talvez o que melhor resumiu a estupidez de um conflito que, durante três anos, colocou o Império da Rússia contra uma coligação volumosa – Reino Unido, França, Reino da Sardenha – a que se juntava o Império Otomano.  

Aqui há uns anos, entre as misérias do nosso quotidiano político – de que Malomil foge a sete pés e para as quais pretende ser um modestíssimo paliativo –, suscitou-se mais um «caso» nacional. Em aceso debate esteve uma vírgula que alegada e dolosamente teria sido introduzida (ou suprimida) de um diploma com força de lei. Pois há historiadores sérios e respeitados que asseveram que a Brigada Ligeira carregou rumo ao desastre, consigo arrastando 118 vidas, também por causa de uma vírgula. Foi a falta de uma vírgula nas ordens escritas enviadas por Lorde Raglan a Lorde Lucan que terá levado este a fazer avançar a Brigada para o abismo da morte. Mais de cem homens morreram pela falta de uma vírgula numa directiva militar. Será difícil encontrar exemplo mais expressivo do absurdo da guerra.     

A Guerra da Crimeia, dizem, foi a primeira a merecer uma cobertura jornalística em larga escala. Aqui entramos no Vale da Sombra da Morte. Valley of the Shadow of Death é uma imagem de 1855, por muitos considerada a primeira fotografia real de guerra – e o itálico na palavra «real» tem uma razão de ser, que já vamos ver. Foi captada por Roger Fenton (1819-1869), advogado e pintor menor, louvado como um dos pioneiros da fotografia de guerra mas desconsiderado enquanto tal. O motivo é simples: as obras que Fenton realizou na Crimeia eram produto de uma encomenda do príncipe Alberto, que pretendia acalmar os ânimos da opinião pública britânica, cada vez adversa à continuação daquele conflito. Roger Fenton, que chegara a ser fotógrafo oficial da Corte, cumpriu as ordens que levava de Londres: as suas fotografias mostram a campanha da Crimeia como uma caçada às lebres no campo inglês, um entretenimento viril de cavalheiros uniformizados em que não se vê sangue derramado nem corpos esfacelados. Aquilo não era a guerra, definitivamente. Nunca lhe perdoaram ter fotografado a guerra numa versão rosa e oficiosa, sendo recorrente a comparação com Mathew Brady (1822-1896), que exibiu com crueza os mortos da Guerra Civil americana. Fenton executou um trabalho encomendado, Brady viu o governo norte-americano recusar-se a comprar-lhe as 10.000 fotografias que compunham o seu acervo da guerra, praticamente morrendo na miséria.

Uma imagem típica de Fenton...
    
 ... e uma imagem típica de Brady.


A crítica ao trabalho de Fenton remete para uma ética do fotojornalismo que assenta numa perspectiva anacrónica, exigindo que aos pioneiros da fotografia os mesmos padrões de comportamento que se impõe aos fotojornalistas dos nossos dias, a era do PhotoShop. Como se não tivesse existido uma natural evolução da ética da reportagem e do jornalismo. No século XIX, quando se davam os primeiros passos na fotografia de guerra, encenar o ambiente não era pecado. Já para não dizer que Brady, o eterno termo de comparação de Fenton, modelo de autenticidade, foi um grande manipulador de imagens. Vejam: 


 Manipulação de Brady: o original.



A fotografia oficial de Brady: retoques no décor e mais um general na imagem. Aqui.


A versão da Guerra da Crimeia que Fenton nos apresenta é, sem dúvida, um simulacro, uma deturpação por aquilo que não mostra. Mas, em todo o caso, aquilo que Fenton mostra também é real, também se passou. Sontag insinua que era cobarde, o que não faz o menor sentido. Fenton correu riscos, para os que precisam deste suplemento macho para louvar o trabalho dos fotojornalistas. A tal ponto que o seu assistente, Sparling, que Fenton fotografou no mesmo dia em que captou Valley..., estar convencido que não sobreviveria àquela excursão pela Crimeia. Acrescente-se outro pormenor: por razões técnicas, os fotografados eram obrigados a posar para Fenton durante longos minutos. O conteúdo do seu trabalho, tido por «conformista» ou «oficial», deve-se, em certa medida, a essas razões de ordem técnica.

 Sparling, o assistente de Fenton.


Exigirmos que mostrasse cadáveres ou corpos mutilados, ao invés de oficiais a fumar cachimbo, é, no fundo, não perceber o tempo em que Fenton se situava e, mais do que isso, a razão de ser que o levara à Crimeia. No fundo, cumpriu ordens, certas ou erradas, mas em tudo semelhantes às que, por falta de uma vírgula, levaram ao desastre da Brigada Ligeira.         

       Valley of the Shadow of Death destaca-se no conjunto das suas imagens da campanha da Crimeia – ainda que não seja a única paisagem que fotografou, ao contrário do que dizem alguns. Pois aqui até há gente por esta Internet fora que chega a atribuir a Fenton a autoria de uma fotografia de Brady… Deus meu! Adiante.

 Roger Fenton, Valley of the Shadow of Death (1855).


Valley of the Shadow of Death é uma imagem poderosíssima, arrebatadora. Não fiquem muito tempo a olhar para ela, pois correm o risco de não conseguirem parar. É uma imagem que já deu a volta à cabeça de muita gente, como veremos. A mim, o que mais impressiona é o tremendo silêncio que dela emana. Fenton fotografou um caminho juncado de balas de canhão, nada mais. Não há uma grande amplitude de vistas, pouco ou nada sugere que a guerra passou por ali. Com uma excepção: as balas de canhão dispersas pelo solo. A fotografia é, até certo ponto, bastante banal: uma estrada, nada mais. Não se vê ninguém, não se vislumbra um ponto de referência, nada há de especial. Nem casas nem pessoas, uma paisagem lunar. E, além disso, tudo se passa ex post factum. O que ali aconteceu já ali não está. É justamente a ausência de tudo o que mais fascina em Valley of the Shadow of Death. Numa linguagem presumida, que Malomil detesta, foge-me a mão para dizer que esta imagem produz uma extraordinária poética do silêncio. Não há epopeia, mas também não há lirismo. Só o silêncio do que já passou. Em todo o caso, a presença das balas assinala que algo se passou ali. É justamente por isso que as balas no caminho são tão importantes. Tão importantes que alguns garantem que foi o fotógrafo que as mandou espalhar pelo terreno…

A ser verdadeira, essa ideia seria mais um golpe no já abalado prestígio de Roger Fenton, considerado um mercenário do fotojornalismo de guerra. Não só escondia a realidade como a manipulava. Em Olhando o Sofrimento dos Outros (trad. port., 2003, pp. 54ss), Susan Sontag subscreve a tese da manipulação e, claro, compara Fenton a Brady e à sua equipa, que não hesitavam em mostrar corpos esfacelados para veicular aquilo a que chamavam «uma moral útil». Escreve Sontag:        


«A guerra era a da Crimeia, e o fotógrafo Roger Fenton, invariavelmente considerado o primeiro fotógrafo de guerra, era nada menos que o fotógrafo de guerra “oficial”, tendo sido enviado para a Crimeia em princípios de 1855 pelo governo britânico por instigação do príncipe Alberto. Apercebendo-se da necessidade de contrariar os relatos alarmantes da imprensa sobre os riscos que não tinham sido previstos e as privações sofridas pelos soldados britânicos enviados para a região no ano anterior, o governo convidara um fotógrafo profissional bem conhecido a dar outra impressão, mais positiva, daquela guerra crescentemente impopular.»
  

«Com instruções do Gabinete de Guerra para não fotografar os mortos, os mutilados, ou doentes, e impedido de fotografar a maior parte de outros temas devido à incómoda tecnologia da fotografia, Fenton lançou-se à tarefa de mostrar a guerra como um digno grupo excursionistas só para homens. (…) As fotografias dele são quadros da vida militar atrás da linha da frente; a guerra – movimento, confusão, drama – fica fora de campo.»

 Susan Sontag (1933 - 2004)


«A única fotografia que Fenton tirou na Crimeia que vai além desta complacente documentação é “O Vale da Sombra da Morte” cujo título evoca a consolação dos Salmos bíblicos, assim como o desastre do anterior mês de Outubro em que seiscentos soldados foram surpreendidos numa emboscada na planície acima de Balaklava – Tennyson chamou ao lugar “o vale da Morte” no seu poema memorialista “A carga da Brigada Ligeira”. A fotografia memorialista de Fenton é o retrato da ausência; da morte sem os mortos. É a única fotografia que não precisava de ser encenada, pois tudo o que mostra é uma vasta estrada cheia de sulcos e juncada de pedras e balas de canhão que ao longe se encurva através de uma árida planície ondulada a perder-se no infinito.»


Susan Sontag é especialmente pérfida para Fenton, pois começa por dizer, como vimos, que aquela fotografia era a única que não precisava de encenação. As outras, que exibiam oficiais fleumáticos entre o ribombar dos canhões, necessitavam de alguma teatralização, de modo a corresponder à missão que Fenton trouxera de Londres. Ao invés, O Vale da Sombra da Morte, porque mostrava apenas uma estrada juncada de pedras e balas de canhão, não reclamava artifícios ou encenações. E, no entanto, nem aí, num simples retrato paisagístico, Roger Fenton teria resistido a compor o cenário. Diz Sontag: 


«Depois de ter atingido o muito bombardeado vale à chegada de Sebastopol na sua câmara escura puxada a cavalos, Fenton fez duas exposições a partir da mesma posição do tripé: na primeira versão da famosa fotografia que daria o título de “O Vale da Sombra da Morte” (apesar do título, não foi nesta paisagem que a Brigada Ligeira levou a sua carga fatal), as balas de canhão acumulam-se no terreno à esquerda da estrada, mas antes de tirar a segunda fotografia – a que é sempre reproduzida – mandou espalhar as balas na própria estrada.» 


Susan Sontag não poupa a acidez das palavras e está cheia de certezas. Numas afirmações, está correcta. De facto, não foi aquele o local onde teve lugar a desastrada carga da Brigada Ligeira. Esta, na verdade, teve lugar no Vale da Morte – que deu o mote ao poema de Tennyson – e não no Vale da Sombra da Morte – que deu o cenário à fotografia de Fenton. Melhor dizendo, às fotografias, pois na realidade são duas. Nisso, Sontag tem inteira razão. São duas as fotografias, facto extraordinário. Uma foi celebrizada. Outra, esquecida.

 Valley of the Shadow of Death.

 A "outra" fotografia.

No entanto, no seu preconceito contra Roger Fenton, acaba por afirmar, sem quaisquer provas, que o fotógrafo, antes de captar a segunda imagem, «mandou espalhar as balas na própria estrada». Dessa forma, a fotografia adquiriu uma enorme expressividade poética, razão maior da sua fama. O vazio do cenário, a trivialidade da paisagem, as balas de canhão dispersas pelo chão como único sinal de que aí se travara um combate. Acima de tudo, o ensurdecedor silêncio que a imagem transmite, o sentimento de vazio e de ausência – a ausência da morte mas também da vida. Sem forçar a nota, quase diríamos que é uma fotografia conceptual e abstraccionista, justamente porque exibe o que lá não está, tendo estado – ou o que por lá esteve, já não estando agora.


 The Illustrated London News.


Vale da Sombra da Morte só é uma fotografia de guerra porque mostra balas de canhão – muitas balas de canhão. E estas, na sua maioria, teriam sido espalhadas pelo chão, num simulacro que, sem o dizer abertamente, Susan Sontag claramente condena em nome da especial «autenticidade» que é exigível aos que retratam o sofrimento dos outros.

Mas há algo que, de imediato, nos faz pensar: se Fenton sempre quis transmitir uma visão edulcorada e complacente da guerra, por que motivo teria decidido aumentar aqui a carga dramática? Essa é uma pergunta que nunca terá resposta, até porque Roger Fenton, talvez arrasado pelo que vira na Crimeia, abandonou a fotografia em 1862. Ao que parece, nunca mais fotografou o que quer que fosse desde essa data. Regressou à prática da advocacia e, certamente por isso, morreu. Aos 50 anos de idade. Nunca saberemos se mandou, ou não, espalhar balas numa estrada da Crimeia.

Existem, no entanto, questões a que talvez consigamos dar resposta. Que existem duas fotografias, tiradas com o mesmo ângulo e com pouco tempo de intervalo, disso não há dúvida. Só uma, a que mostra as balas, mereceu destaque e teve honras de ser intitulada a partir do Salmo 23, Vale da Sombra da Morte.  

Mas como podemos ter a certeza que essa, a que mostra mais balas, foi a segunda e não a primeira imagem que Fenton captou? Mais: que provas existem que foi o fotógrafo que mandou espalhar balas de canhão na estrada? Não será possível sustentar que Fenton, pelo contrário, ordenou que fossem retiradas as balas e que, afinal, a primeira fotografia seja a segunda e vice-versa? Mais ainda: e quem nos diz que as balas não foram retiradas por outrem, para desimpedir o caminho ou para recolher munições?

A tese de que Vale da Sombra da Morte é uma imagem encenada não foi avançada pela primeira vez pela autora de On Photography. Susan Sontag afirma que soube da existência de duas imagens ligeiramente distintas graças à informação prestada por Mark Hawort-Booth, do Victoria and Albert Museum, e diz também que ambas se encontram reproduzidas no livro The Ultimate Spectacle: A Visual History of the Crimean War, publicado por Ulrich Keller em 2001. Todavia, foi indubitavelmente o ensaio de Sontag que deu projecção a esta tese e, de certo modo, acabaria por a consagrar como «canónica».

Porém, o realizador e documentarista norte-americano Errol Morris, claramente apanhado nas malhas de Valley of the Shadow of Death, quis ir mais longe. E foi. Levou ao limite dos limites uma investigação em torno da celebérrima fotografia de Roger Fenton. Entrevistou várias pessoas, viajou até à Crimeia, descobriu o local exacto em que Fenton tirou a fotografia, submeteu ambas a imagens aos mais variados testes e exames. O percurso detectivesco da sua investigação pode ser lido aqui, no The New York Times, mas foi incorporado num livro da sua autoria que é absolutamente imperdível. Believing is Seeing (Observations on the Mysteries of Photography). O título será, creio, um jogo de linguagem com a máxima de São Tomé. Believing is Seeing. Ando a ler um outro livro, algo crazy, de Mark Dery, I Must Not Think Bad Thoughts. Drive-By Essays on American Dread, American Dreams. Saiu há pouco, tem ensaios muito bons e outros muito maus. Num deles, tropecei numa citação que se ajusta totalmente ao espírito da obra de Morris: «Belief is part of seeing. It’s hard to filter out the interpretation and leave mere facts». Morris concordará com a primeira afirmação e, justamente por isso, tenta infirmar a segunda: o seu propósito é concentrar-se nos factos, antepor às «interpretações» (como a de Sontag…) uma busca exaustiva de dados e elementos objectivos.






Believing is Seeing reúne alguns ensaios de Morris que, à semelhança deste sobre Fenton na Crimeia, são o produto das suas insanas inquirições em torno de diversas imagens. Há muita coisa na vida que tenho que agradecer ao Francisco Teixeira da Mota. Duas, em especial: o ser como é e ser meu amigo, por um lado; e a paciência que tem para me acompanhar nestas loucuras, por outro. Agora, devo-lhe mais esta – foi ele que me aconselhou a leitura de Believing is Seeing. Mais do que um livro sobre fotografia, trata-se de um thriller do melhorzinho que há no mercado.

Não vou maçar os leitores com uma descrição das andanças de Errol Morris e lamento muito estragar o suspense. Nota-se perfeitamente que Morris estava mortinho por mostrar que Sontag se enganara e que a segunda fotografia era afinal a primeira. A sua honestidade não lho permitiu: ao fim de mil e um trabalhos, que descreve ao pormenor (às tantas, confesso, o leitor perde-se no meio de algum tecnicismo…), Errol Morris declara que, compulsada a matéria probatória, o seu julgamento coincide com o da opinião dominante – naquela tarde de 23 de Abril de 1855, Roger Fenton captou duas imagens do Vale da Sombra da Morte, tendo começado por tirar a fotografia em que surgem poucas balas de canhão e, de seguida, aquela em que, do lado direito, o caminho está pejado de esferas de chumbo.


 Imagem A: balas de canhão assinaladas a azul

 Imagem B: balas de canhão assinaladas a vermelho

No entanto – e esse é o ponto –, daí não decorre que Fenton tenha encenado a fotografia que o celebrizou, como nada prova que haja sido ele a mandar colocar balas de canhão na estrada para dramatizar a paisagem. A análise de Fenton é pericial e imparcial, minuciosa à exaustão e, sobretudo, destituída de preconceitos e de intelectualismos. Com isso, acaba por ser muito mais justo e objectivo relativamente a Roger Fenton do que Susan Sontag e os seus excessos interpretativos. É pena que Morris tenha investido tanto na resposta à questão das fotografias e não nos dê grande informação histórica sobre o que se passou no Vale da Sombra da Morte. Havendo um Vale da Morte e um Vale da Sombra da Morte, tendo Fenton fotografado este último, fiquei muito curioso sobre o que ali aconteceu. Sim, é certo que por ali não passou a Brigada Ligeira. Mas o que estavam a fazer naquela estrada tantas balas de canhão? Quantos ali morreram? Porque chamam ao lugar Vale da Sombra da Morte?   

 O Vale da Morte, nos nossos dias.

 A fotografia de Fenton.



Nos nossos dias.



O vale da Sombra da Morte, nos nossos dias.


Não foram estas perguntas que atormentaram Errol Morris. Este, graças a ciclópicos trabalhos, com a ajuda de vários assistentes, deu-nos, pelo menos, uma resposta que é concludente: das duas fotografias de Fenton,  Valley of the Shadow of Death foi captada em segundo lugar. Para os mais desprevenidos, isto pode parecer uma minudência, much ado about nothing. Temos de ter presente, contudo, que estamos perante umas das imagens mais famosas da História da Fotografia, aquela que é considerada, como disse no início, a primeira fotografia real de guerra. Não é por acaso que Susan Sontag lhe dedica tanta atenção. Isto é muito mais importante do que parece.

Mesmo que Fenton tenha encenado a fotografia, mandando colocar mais balas no caminho do que aquelas que já lá estavam (sublinhe-se: já lá estavam balas), dizer que manipulou a realidade é bastante temerário. Sobretudo, não devemos fazer extrapolações abusivas e usar esse argumento para questionar todo o produto da sua jornada na Crimeia. Sem intuitos desculpatórios, a existir «encenação» esta ainda se enquadra no âmbito do trabalho de Fenton, nos apertados limites que um trabalho «de encomenda» naturalmente possui. Poderia ter feito outra coisa, mostrando a morte e a dor? Claro que sim. Mas este era o seu trabalho. Assim o fez, assim o apresentou.

Não vou entrar na discussão sobre a ética do seu procedimento, até por falta de competência. Mas há uma coisa que me impressiona: praticamente não existe nenhuma fotografia célebre que não suscite polémica. Já repararam nisso? Na maior parte das vezes, a controvérsia envolve acusações de manipulação ou de encenação. Quase todas as imagens famosas têm gerado querelas. A fraude será assim tão generalizada e corrente? Ou não será antes a inveja?



George Inness, The Valley of the Shadow of Death, 1867.


Muito gostaria de falar agora do poema de Tennyson e, sobretudo, do Salmo 23 e das suas várias versões, que têm inspirado muita música pop, de Johann Sebastian Bach a Marylin Manson. Mas como muitos leitores amigos se têm queixado – e bem! – da louca desmesura destes textos, acabo já.

Por aqui me fico, com um abraço ao Ico, do