Cópia gráfica da capa do livro. .
Também no olhar dos homens está a sua circunstância. E se há homens que tornam as águas turvas para que elas pareçam mais profundas, no olhar de António Barreto, que as fotografias deste livro desvendam, existe uma surpreendente transparência. Ou a angulosa luminosidade das coisas simples. No seu olhar, está uma biografia, porque, neste livro, há muitos anos de fotografia. E muitas circunstâncias de quem fotografou.
Hay-on-Wye, Grã-Bretanha, 1993. .
Ler a fotografia de António Barreto vai ser possível na Galeria Corrente d’Arte a partir de 11 de Novembro e até 30 de Dezembro de 2010. Na inauguração da exposição será lançado o livro de António Barreto em coautoria com Ângela Camila Castelo–Branco, “António Barreto: Fotografias, 1967 – 2010”, editado pela Relógio d’Água Editores.
Na fotografia que ilustra a capa deste livro estão dois homens a conversar, em baixo está a cidade de Montreux que os separa das águas do Lago Léman e das montanhas de Haute Savoie. Isto é, resumidamente, o que a fotografia nos mostra. Provavelmente, o fotógrafo viu mais. Na fotografia não podemos adivinhar que ele se encontrava numa estrada num plano superior e que estava acompanhado por um grupo de amigos, como verifiquei nos negativos que se seguiam. Isto vai permitir-me uma leitura diferente. O sítio permite divagar. A dois passos dali, fica o Château de Chillon, local de detenção de François Bonivard, herói da liberdade cantado por Lord Byron, que glorificou Sintra e detestou os portugueses. Com a fotografia, as associações são surpreendentes e inevitáveis. Tanto o conhecimento prévio que faz parte da cultura individual, como o conhecimento adquirido a posteriori em resultado do acesso que tive aos negativos do fotógrafo, vão influenciar a leitura das suas imagens.
Montreux, Suiça, 1970. .
O fotógrafo deslocou-se a França, num Inverno particularmente rigoroso, no ano de 1970. Foi então que fotografou Champigny. Para quem desconheça, Champigny era o maior bairro de lata da Europa, onde viviam os portugueses imigrados (os “bidonvilles” como lhes chamavam os franceses e que Gérald Bloncourt denunciou em muitas reportagens fotográficas). Era a “Gente do Salto” e “Os anos da lama” tão concretos nos documentários realizados por José Vieira. Bairros construídos com bocados de folhas de lata dos bidões do gasóleo e madeiras velhas das cofragens das obras. As casas, sem esgotos, água e electricidade, eram aquecidas a carvão cuja combustão enganava as noites prolongadas e frias. Na fotografia aqui reproduzida estão duas pessoas de costas, debaixo de um guarda-chuva negro, parecem passear-se no melhor dos mundos. Naquelas condições tão adversas, o fotógrafo surpreendeu o paradoxo. É a característica polissémica da fotografia que nos possibilita esta interpretação idílica ao depararmo-nos com um dos mais marcantes ícones da dureza da imigração portuguesa em França. Português, antigo comunista (de cuja ideologia se afastara a partir de 1968), refugiado/emigrante e já formado em Sociologia, ter-lhe-á seguramente tocado, muito para além da reportagem fotográfica, a situação dos seus conterrâneos.
Champigny, França, 1970.
Nas fotografias feitas na Argélia, em 1973, descobrimos-lhe o olhar distante, para não ser confrontado ou apenas não interferir no cenário, na narrativa, naquilo que quer fotografar. O olhar camuflado, entre olhares que se cruzam partindo de um lado e do outro, oposto na fotografia, em direcção à rapariga que se encontra encostada ao paredão na Baía de Argel. O olhar picado que observa os argelinos sentados a jogar dominó e que não se apercebem da sua presença, Argel, 1973. António Barreto quer mostrar-nos as situações, mas quer estar o menos possível nas fotografias. Como se pretendesse que aquilo que sente não interfira com a realidade captada pela objectiva. Como se quisesse ver o que os outros estão a ver e como se almejasse o cúmulo dos grandes narradores de imagens: a presença ausente. .
Joëlle Kuntz, Argel, Argélia, 1973.
Não se fica indiferente a correntes e tendências que o tenham influenciado. Alguns dos movimentos estéticos que terão contribuído para a singularidade do olhar do fotógrafo, que sempre se distanciou da fotografia feita à maneira salonista por muitos fotógrafos portugueses, foram a Straight Photography, o Realismo e a Street Photography. O exílio na Suíça foi, assim, uma janela para o conhecimento, o acesso a jornais, revistas e publicações como a Life, que apostavam na fotografia como principal fonte de informação. Foi o passaporte para o fim do obscurantismo vivido na ditadura do Estado Novo e o saborear da liberdade que lhe possibilitaram outras experiências, numa democracia europeia. .
Berlim, RDA (República Democrática Alemã), 1967.
António Barreto praticamente não faz fotografias em contraluz, preferindo explorar a incidência da luz oblíqua, que acentua a perspectiva e cria ambientes sombrios; a luz que molda os objectos e lhes realça a textura; os recortes desenhados pelas sombras; a atmosfera romântica dos interiores onde a claridade irrompe através de portas e janelas e sugere ambientes que reportam para a pintura setecentista, como no interior de uma igreja em Oxford, 1992.
Oxford, Inglaterra, 1991.
A fotografia de António Barreto (a maioria, pelo, menos) não é documental, porque aquela que diz respeito ao Douro vinhateiro apresenta-se como um núcleo especial que se destaca do resto do seu trabalho. Sei por que isso acontece, mas não vou tentar explicá-lo. Vou antes transcrever, ou melhor vou “enxertar” aqui uma parte de um texto que António Barreto escreveu em Um Retrato do Douro, em 1984: “Galgaram os montes, quebraram a rocha, fizeram terra, levantaram muros; plantaram videiras, seleccionaram castas. Sofreram o oídio, a filoxera, o míldio e a maromba, recomeçaram tudo várias vezes. Mandaram vir cepas americanas, enxertaram variedades durienses e rústicas, encontraram ou importaram remédio, o sulfato, o enxofre ou o bórax. Trataram as videiras como trataram os filhos, as adegas como as suas casas. Podaram, enxertaram, cavaram, escavaram, redraram, e nunca um desses trabalhos foi simples ou fácil. Encosta acima, é sempre um calvário. Vindimaram a cantar, para esquecer o cansaço e os calores de quarenta graus. Levaram as uvas às costas, em cestos de quatro ou cinco arrobas, em sítios tais aonde não vão carros de bois, onde se desce para o precipício e se sobe para o inferno. À noite, pisaram uvas, cortaram lagaradas, horas a fio, num dos mais violentos trabalhos de toda a agricultura, que os álbuns de turismo ou os citadinos filhos de proprietários acham pitoresco, mas que só se aguenta porque é preciso viver, porque uma posta de bacalhau cru e um caneco de aguardente aquecem o corpo e porque as mulheres, em frente aos lagares, aquecem as almas. Transportaram tudo, à cabeça e às costas, almudes de água-pé, canecos de água, vasilhas de aguardente; pedras e terra; esteios de ardósia, rolos de arame, cepas, cestos de uvas. Carregaram caros de bois, desceram os montes, entraram no rio, carregaram barcos rabelos, desceram o rio, descarregaram os barcos, carregaram os vapores, subiram o rio, levaram os rebelos à «sirga», à corda, rio acima, no que deveriam ser as galeras do Douro”. . Este longo trecho da sua autoria explica bem, julgo, a razão pela qual, este núcleo fotográfico de António Barreto centrado na Região demarcada do Douro, reúne os requisitos para ser qualificado como fotografia documental. No livro, poucas fotografias do Douro foram seleccionadas, por entender merecerem ser vistas num conjunto mais alargado.
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Douro, 1990. .
Admirador de Henry Cartier-Bresson, algumas das suas fotografias lembram claramente os trabalhos do Mestre (ou do “Génio”, como o trata num artigo de homenagem). Tal acontece com a fotografia “Jogo de Cartas na Foz do Douro” (Foz do Douro, 1990.) que, pelo enquadramento e sequência de planos, associei imediatamente à fotografia de Bresson, “Sur les bords de la Marne”, datada de 1936.
Sur les bords de la Marne, 1936. Fotografia de Henry Cartier-Bresson. .
Porto, 1997.
Também importante na fotografia é a dimensão em que nos é apresentada. Recordemos que algumas das fotografias impressas neste livro vão ser expostas noutras dimensões e provavelmente ganharão novos sentidos ao serem ampliadas. Outras ficaram a ganhar na dimensão que foram impressas no livro. Espaço, tamanho e conteúdo são condicionantes essenciais para a leitura de qualquer registo fotográfico. O fotógrafo pode inclusive explorar as possibilidades criativas ao jogar com a proporção e com a escala, como aconteceu com a fotografia das pirâmides de Gize, Egipto, 2006. António Barreto pretendeu alterar a escala de grandeza física dos objectos registados na imagem e conseguiu alterar as proporções da pirâmide de Quefrén, com cerca de 160 metros de altura, quando comparada com a esfinge de Sesheps, com 20 metros de altura e com uma pequena pedra do templo de Sesheps pouco mais de um metro acima do solo, invertendo a grandeza da proporção dos mesmos. Inteligente e curioso jogo, sobretudo se se atender à intencionalidade do fotógrafo.
Pirâmide e Esfinge, Gizé, Egipto, 2006. .
Nas suas fotografias está o homem que não se intimida com a desproporção da sua dimensão perante a imensidão da Natureza, como no Glaciar de Chamonix, França, 1970. .
Chamonix, França, 1972.
Um fotógrafo pode chegar ao fim da vida apenas com uma ou outra fotografia conseguida entre milhares de negativos. A explicação do sucesso dessas imagens estará mais nos olhos de quem as lê. No conjunto seleccionado para este livro, algumas despertaram-me maior atenção. “Os meninos na ilha de pedra”: parece uma jangada arrastada pela força da corrente do Rio Douro, 1990. “A passadeira mole”, cuja desconstrução leva a lugar nenhum: o plano picado mostra-nos uma mulher com uma criança pela mão que atravessa em passo acelerado uma réstia de geometria segura que resulta da convivência entre a ordem e o caos, Paris, 1979. “O passageiro solitário” no cais da estação de comboio de Crossharbour: a solidão que sugere a imagem é apenas aparente, pois nada do que está nela é possível sem a existência do colectivo. A cidade não está inabitada, os escritórios não estão vazios e de que nos serviria uma linha de transportes fantasma, sem comboios nem passageiros? Gare de Crossharbour, 1990. Talvez esta seja a fotografia mais marcante da dicotomia entre homem e meio, verdade e aparência, imaginação e realidade. . Poderíamos teorizar sobre a solidão observando outras fotografias, mas será a sua intenção que observemos nessas imagens a solidão ou quererá o fotógrafo despertar em nós a atenção para o abandono, a velhice e a tristeza, componentes sociais do quotidiano? Estas e outras questões são importantes quando pretendemos ler as fotografias dos outros.
Rio Douro, 1990.
Paris, França, 1978.
Londres, inglaterra, 1990. .
Das conversas que mantive com António Barreto pareceu-me ser seu intuito, intuito profundo, que a imaginação (ou seja, o que orientou a intenção do fotógrafo) não interfira com o real (aquilo que de facto está a ser fotografado). Isto é, que aquilo que transpareça na fotografia seja o mais aproximado do real e não aquilo que o próprio possa idealizar. Porque a fotografia, toda a fotografia, antes de ser imagem é concepção. E é esta complexa rede interpretativa que nos transporta à Fenomenologia de Husserl (1859-1938) ou seja, a uma abordagem conceptual ditada pelo “que se mostra em si mesmo, o que se revela”. Husserl rompe com o que até então estava estabelecido nas teorias da imagem, a maioria baseadas na filosofia cartesiana. É essa a conclusão de Jean-Paul Sartre em “L’imagination”, ensaio que apresentou em 1936 (não por acaso, é ao ensaio “L’imagination” de Sartre que Roland Barthes dedica Chambre Claire). Foi também em 1936 que Walter Benjamim escreveu “Pequena História da Fotografia”, inserida na obra Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, que posteriormente abriu caminho a uma resposta de Vilém Flusser no “Ensaio sobre Fotografia – Para uma filosofia da técnica”, 1985. A importância de lermos os trabalhos destes autores, todos sobejamente conhecidos, é a de ficarmos com uma maior capacidade interpretativa dos objectos fotográficos, isto é, ficarmos mais bem preparados para uma leitura da imagem fotográfica. Mas não há necessidade de complicarmos se o propósito for apenas o de evocar as sensações que nos provocam estas imagens.
Nazaré, 1983.
No livro, optámos por legendas simples apenas com a informação essencial, até para que a leitura das fotografias não sofresse qualquer influência. Será difícil para o observador encontrar um fio cronológico ou temático para se orientar, porque também aí tentámos fazer uma sequência estética preterindo outras soluções que, ainda que porventura mais «lineares», pudessem condicionar a leitura do público. as duas centenas de fotografias, foram intencionalmente despidas de histórias, para que cada um faça a sua história, a sua própria interpretação. Há, no entanto, que ressalvar que o olhar fotográfico de António Barreto se manifesta como um prolongamento do pensamento do sociólogo, do ensaísta, do professor e do cronista. São quase 50 anos de registo fotográfico de um olhar que transmite a mesma consciência ética e estética, que persegue os mesmos objectivos, que permite construir uma narrativa coerente, baseada numa visão própria de quem tem a fotografia também como fonte de expressão e de pensamento.
Biblioteca Nacional de Paris, França, 2000. .
O seu olhar é os cantoneiros de Sabrosa e os mineiros de Oruro. Os desempregados da Lisnave e o António Cachapuz da Divor. É a paisagem dos Andes e as vindimas no Douro. As peixeiras da Nazaré e os peregrinos de Fátima. Os glaciares de Chamonix e a praia de Fontanelas. O memorial ao Holocausto em Berlim e as Pirâmides de Gizé. A menina de M’ Zab na Argélia e o rapaz em Pizac no Peru. O Inverno em Champigny e as férias no Cairo. A Muralha de Adriano em Inglaterra e a Ópera La Fenice em Veneza. A Piazza del Popolo em Roma e o Arco da Défense em Paris. É Oxford, Hay-on-Wye, Paris, Roma, Budapeste, Praga, Berlim, São Petersburgo, Lisboa, Lima, Patagónia, Azambuja, Genebra, Porto e Vilnius. São calceteiros, médicos, pescadores, estudantes, camponeses, empregados de escritório, metalúrgicos, professores, padres, mineiros, militares, polícias, advogados, turistas, é gente anónima. É testemunho. . Seleccionadas entre alguns milhares de negativos e diapositivos a preto e branco (12.442), organizadas e contextualizadas as fotografias escolhidas surgem necessariamente como uma entre muitas possibilidades.
Ângela Camila Castelo-Branco, Lisboa 20 de Agosto de 2010 .
(Excertos do texto: “Ler Fotografia” de Ângela Camila Castelo–Branco in “António Barreto: Fotografias, 1967- 2010”). .
António Barreto acompanhou a produção do livro na gráfica Guide.
António Barreto. (Fotografia de Ângela Camila Castelo-Branco)
Angela Camila Castelo-Branco (Fotografia de António Barreto) .
A exposição estará patente ao público de 12 de Novembro a 30 de Dezembro de 2010.
Das 14:00 às 19:00 de segunda a sábado.
Galeria Corrente d'Arte
Av. D. Carlos I, nº 109 - 1200-648 Lisboa Tel. 213 941 722 correntedarte@sapo.pt/ A bertura: das 14.00 às 19.00, de segunda a sábado
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