Selecção e organização de Ângela Camila Castelo-Branco
Há propostas de
trabalho que nos atraem, mas inquietam. Patrícia Reis, na sua persistente
vontade de surpreender, resolveu quebrar os preceitos habituais de formato de
publicação da revista Egoísta, decidindo que a edição de Junho de 2012 seria
redonda como a Terra. No seguimento da apresentação de um outro portefólio de
fotografias de António Barreto, realizado para a revista anual da Fundação
Eugénio de Almeida (América’78 - Kodachromes de António Barreto), a editora
desafiou o fotógrafo a contribuir com um conjunto de 12 imagens para o número
49 da Egoísta, sob o tema “Noite”.
Se o tema, dado a
múltiplas interpretações, permitia fazer correr livremente a imaginação, já o
formato da publicação desestruturava, a priori, toda a lógica de concepção e
enquadramento concebido no acto fotográfico. A fotografia, enquantoresultado de um espaço figurativo
perspectivado pelo fotógrafo, obedece também a uma organização que é limitada
pelo plano focal do aparelho. Captamos imagens através de visores de vários
formatos: rectangulares, quadrados ou redondos. Na ausência de manipulação,
seja por distorção, sobreposição de negativos, montagem, ou intervenção do
Photoshop, o resultado final é
sempre confinado a dois formatos: quadrado e rectângulo; redondo é que nunca,
se exceptuarmos os primeiros rolos da Kodak ou as fotografias obtidas a partir
das câmaras Pinhole.
Apesar de ter presente
que o olhar do fotógrafo constitui o essencial do acto fotográfico, seleccionar
e organizar um conjunto coeso, que obedecesse ao critério atrás descrito,
proporcionou discussão e obrigou a uma reinterpretação das imagens. Uma tarefa
trabalhosa e entusiasmante, tanto mais que António Barreto participou e teve
sempre voz activa na decisão da escolha final.
O presente conjunto de
fotografias respeita uma narrativa evolutiva em diversos momentos e situações
da actividade humana. Nem sempre aquela mudança resulta no desaparecimento de
uma actividade, quase sempre evidencia a transformação ou adaptação da
mesma a uma outra realidade. O fotógrafo mostra-nos a agricultura, o comércio,
o trabalho, o pão que nos chega à mesa e o lazer, em especial a terra da qual tudo podemos esperar: a aridez oxidada dos desertos, a passividade com que é
rasgada e preparada para receber as sementes, a generosidade com que nos recompensa
nas colheitas.
As 12 fotografias aqui
intencionalmente geminadas, procuram mostrar “Imagens Perdidas”. São fragmentos de
vidas e rotinas dispersas no tempo, intemporais portanto mas, apesar de tudo,
imagens que se sentem à vontade no presente. Assim, o homem montado num jumento transportando folhas de palma, segue o seu caminho pelas areias do
deserto, indiferente à estrada de asfalto que o ladeia (M’zab, Argélia 1973).
Por ventura, a sua resistência ultrapassa a das modernas viaturas, cujas carcaças
sucumbem à areia dos desertos, como testemunha o esqueleto de um
“carocha” no deserto do Sara, fotografia do mesmo ano na Argélia. Ainda no
norte de África, e daí para o sul da Europa, apenas dois anos separam a
fotografia do costureiro “berbere”, que ganha a vida com uma máquina de costura
em Beni Esguen, da fotografia em Lisboa onde conversam à janela de um primeiro
andar do número 141 da Rua Augusta os alfaiates da Eugénio de Moraes, Lda.
Das vindimas no Douro ao casal que semeia na Beira Litoral, a agricultura sempre presente, imagens
marcantes de um país que, contudo ainda hoje importa quase metade dos produtos alimentares
que consome. Com o olhar fixo na câmara de António Barreto, o vendedor de
alhos, em Ponta Delgada, é observado com espanto por um rapaz
descalço que calcorreia a calçada negra da cidade com a mesma vivacidade com que
os meninos em Argel se apressam a levar o pão para a mesa que os espera. Em
Angra do Heroísmo, ao olharmos com uma certa nostalgia a fachada do Café
Atlântico, distribuidor de espumantes e vinhos das Caves Monte Crasto,
esquecemos que os líquidos que a boca pede são fruto de trabalho árduo
suportado por homens que, até ao fim do ciclo da vindima, podaram, enxertaram,
cavaram, colheram e transportaram às costas os cestos carregados com 60 quilos
de uva.
Trinta a quarenta anos
nos separam destas fotografias que parecem fazer parte de uma realidade
longínqua. Mudaram os transportes, substitui-se a força braçal pelas máquinas,
intensificou-se a produção, alargaram-se fronteiras... Para melhor ou pior, em
continua batalha de criatividade, o engenho e a arte do homem transformaram a
natureza!
Ângela Camila Castelo-Branco
M' zab, Argélia 1973
Douro 1975 Beira Litoral, ca. 1975
Argel, Argélia 1973 Tourém, Trás-os-Montes 1982
Ponta Delgada, Açores ca. 1980 Angra do Heroísmo, Açores
Lançamento do livro / catálogo, concebido e realizado por Jorge Calado em homenagem a Gérard Castello-Lopes, apresentado por António Barreto no BES Arte & Finança.
Apresentação de António Barreto.
Aparições, de Gérard Castello-Lopes, por Jorge Calado
BES ART e Fundação Calouste Gulbenkian Lisboa, 22 Novembro de 2011
Saudações.
Jorge Calado. Emílio Rui Vilar e Ricardo Salgado, Danièle Castello-Lopes e filhos
Gostava também de poder dizer “Gérard”,
É um dia grande para a fotografia. Depois desta belíssima exposição, temos agora o livro que a completa e lhe vai sobreviver anos. As fotografias de um dos nossos maiores, algumas delas inéditas apesar de terem mais de 50 anos, arrumadas, expostas e comentadas por um dos nossos grandes, Jorge Calado, constituem um luxo de que não nos deveremos esquecer. Estamos a viver um momento raro na história da nossa fotografia, podem crer.
Poderia repetir o que escrevi no dia da morte de Gérard Castello-Lopes: “É seguramente o mais interessante fotógrafo português do século XX. Um dos mais, pelo menos”. Só que, ao reler, me dei conta de um erro. Ou de uma redução injusta e involuntária. Qual o significado do termo português? Se estamos apenas a falar de uma nacionalidade, de uma terra de origem familiar ou de um poiso, ainda se aceita. Mesmo se Gérard, a seguir esses critérios à letra, não era realmente, ou não era apenas um português... Mas enfim, digamos que era um dos nossos. O problema é o da acepção exacta do termo “fotógrafo português”. Esse foi o meu erro.
Apesar de sinais de identidade evidentes em algumas das suas fotografias (as pedras da calçada, certas igrejas, a roupa a secar, as fachadas decadentes dos edifícios...), sinais detectados sobretudo por portugueses, pois claro, nada me fará dizer que Gérard é um fotógrafo representativo do que poderá ser a “fotografia portuguesa”, conceito aliás discutível, eventualmente horrendo. A boa fotografia, a melhor fotografia é sempre universal! Gérard fotografou, também, Portugal. Gérard fotografou, como poucos, Lisboa, a Lisboa de O’Neil e alguns restos da Lisboa de Pessoa. Mas também fotografou o mundo, Paris e França, em particular. Situa-se no plano dos maiores, sobretudo europeus, do seu tempo. Descoberto e redescoberto tardiamente, podemos colocá-lo ao lado dos grandes fotógrafos deste continente, em particular dos seus contemporâneos dos anos cinquenta e sessenta. Com esta ressalva, não me importo de dizer que Gérard Castello-Lopes é seguramente um dos mais importantes fotógrafos portugueses.
Esta apreciação leva-me logo a um ponto essencial que gostaria de sublinhar hoje. Por várias razões, de que Jorge Calado dá cabalmente conta na sua apresentação, Gérard foi pouco visto e conhecido no seu tempo. Só a partir dos anos oitenta, em primeiro lugar pela mão de António Sena e da sua galeria Ether (“Vale tudo menos tirar olhos”), começou a ser notado. Depois disso, Gérard ocupou um lugar que era o seu pelo mérito e pela sua excepcional qualidade e sensibilidade. Mas Castello-Lopes era um homem especial, era um amador, era tímido, não seguia escolas nem capelas, tinha uma distância aristocrática ao mundo da comunicação... Além disso, era reservado, com estranhos sentimentos diante da sua própria obra. Cuidadoso e meticuloso, não queria deixar que esta seguisse vida autónoma. Hoje, sabemos que deixou dezenas de milhares de negativos, muitos inéditos, num acervo que talvez nunca tenha sido estudado como deve ser. Pelo que Jorge Calado nos diz, esta exposição e este livro estão limitados no âmbito: apenas estão presentes as imagens que existiam em casa dele e da Danièle, em impressão positiva, prontas a mostrar. A conclusão é simples e salta aos olhos: há muito a fazer, a estudar e inventariar, a catalogar e documentar, a imprimir, a publicar e expor. Além de que, com impressões actuais de diversa escala e dimensão, como ele próprio veio a descobrir e intuir, podemos ter ainda mais novidades. Felizes os países que se podem orgulhar de ter, ainda por investigar, um acervo destes, com o valor e o interesse que lhe podemos atribuir. Gostava de acrescentar também: felizes os países que têm interessados, instituições, tempo, gosto e recursos para tal empreendimento!
É muito tentador dizer que Gérard Castello-Lopes não era homem deste século. Deste, do XXº. Que tem algo do Renascimento. Ou das Luzes. Pela cultura, pela erudição e pela sucessão de actividades. Foi economista, gestor, diplomata, escritor, ensaísta, crítico, cineasta, jazzman, desportista, mergulhador e... fotógrafo. É como fotógrafo que será recordado. Tudo o que fez foi com o espírito do amador, o rigor do cientista e a dedicação do profissional. É verdade que o podemos colocar facilmente naqueles séculos em que as ciências, as artes e as humanidades se frequentavam e estabeleciam uma boa vizinhança. É verdade, mas é fácil. Pensando duas vezes, olhando para esta exposição que Jorge Calado organizou com esmero e significado e folheando minuciosamente este maravilhoso livro, a conclusão é outra: Gérard Castello-Lopes não tem século. Nunca ficou preso ao seu tempo. Mas ficou fiel às suas imagens. Nesta exposição e neste livro, a aguda ironia do seu curador colocou, lado a lado, fotografias que distam de dezenas de anos entre si, mas sobre as quais se poderá dizer que o seu autor fez a mesma fotografia vezes e vezes sem conta ao longo dos tempos. Vejam-se as pessoas fotografadas de costas, a roupa a secar, os espelhos de água, o abatimento dos idosos, o estranho olhar sério de crianças e adolescentes... Apesar das rupturas e mau grado as suas várias vidas, há um fio condutor, há um olhar que se mantém.
Este olhar que se mantém, esta maneira de ver tão sua, não dispensa influências e parecenças. Passeiam-se nestas páginas Cartier-Bresson, sobretudo, mas também Doisneau, Alvarez Bravo, Brassaï, Eugene Smith e Kertész. Aqui e ali, um ar de Walker Evans ou de Weston. E as que poderemos chamar as suas “fotografias francesas” dos anos 50 e que poderiam ter sido feitas por alguns dos acima referidos. Todos passam por aqui, Gérard passou por todos. Como os grandes pintores e fotógrafos, para não dizer os artistas em geral, soube compor, tirar ideias e receber inspirações. Mas soube também fazer a sua síntese e o seu género, apurar a sua linguagem e traçar o seu caminho. Nunca pertenceu aos seus mestres, aos que o ensinaram, nem aos que o inspiraram: cresceu e morreu livre. Como quase sempre, a liberdade é também solidão. Nunca quis deixar-se fechar em escola ou estética. Bem podia, na sua fase dita humanista dos anos cinquenta e sessenta, deixar-se navegar pelas ondas neo-realistas que traziam conforto e alguma companhia. Podia limitar-se a seguir o mestre Cartier-Bresson. Não fez uma coisa nem outra. Navegou pelas margens. Preferiu a liberdade. Gostava de tocar várias músicas. Repito-me: ainda há muito para ver e estudar e talvez mostrar e publicar... Não é possível dizer hoje que sabemos tudo de Gérard Castello-Lopes.
Ao contrário do nosso Curador, creio que Gérard teve várias vidas de fotógrafo. Talvez um só Gérard, mas várias vidas. Mesmo se traços e fios as ligam. Aliás, o próprio Jorge Calado, no seu texto, reconhece que houve pelo menos um renascimento. Esta exposição, tal como foi magistralmente organizada, tem programa. Ou antes, tem uma ideia forte: mostrar a continuidade e a coerência. Mas deixa-nos a incerteza do que está para além do que se vê. Percebo a cortês delicadeza do Jorge, que apenas quis mostrar as provas que Gérard, lui même, aprovara em seu tempo. E aquelas que ele deixou impressas e prontas. Mas a obra fica para além da morte. E o seu tempo virá... Insisto em que Gérard teve várias vidas de fotógrafo. Com estas “Aparições”, inicia-se mais uma. E não a última.
Conhecemo-nos tardiamente. Ele, já com sessenta. Eu, não muito longe. Já ele tinha recomeçado a fotografar e mostrado algumas provas. As primeiras imagens que eu tinha visto formavam um magnífico portfolio alentejano no livro do José Cutileiro “A Portuguese Rural Society”, publicado em Oxford, no princípio dos anos setenta. Vi depois a exposição da Éther, que me deslumbrara e tinha, a seguir, visto o seu primeiro livro a sério, “Perto da vista”. Encontrámo-nos por causa de uma breve recensão que eu escrevera para o Diário de Notícias. Um dia, no meio da rua, um carro parou desabridamente e dele se extraiu um longo senhor que nunca mais acabava de sair. Era o Gérard. Entre a rua e o passeio, apresentou-se. Depois disso, conhecemo-nos um pouco melhor. Sem intimidade, conversámos o bastante para eu ficar com admiração e respeito. Em casas de amigos, falávamos de tudo. No Grémio Literário, a fotografia ocupava-nos. Foi ali que, um dia, depois de uma dura discussão sobre a questão moral na fotografia, lhe disse: “Ó Gérard, você é um grand timide!”. Levantou-se, abriu ligeiramente os braços e retorquiu, com o sorriso de quem é apanhado: “Mais bien sûr”!
Nesta altura, eu ainda não tinha decidido para mim se Gérard era um poseur ou um tímido. Ele teorizava sobre a sua dificuldade em fotografar pessoas. Eu hesitava em aceitar os seus argumentos ou encontrar neles uma espécie de justificação luxuosa para uma relativa abstenção e um grande distanciamento. A evidência da sua timidez revelou-se então. Várias outras pessoas terão chegado à mesma conclusão. A timidez era uma maneira de sentir as dificuldades do acto de fotografar. É verdade que existe uma questão moral. Uma questão de moral. Fotografar alguém é sempre um problema. Fotografar um desconhecido é um enorme problema. Maior problema ainda é a utilização dessas imagens. Vários termos nos ocorrem a este propósito. Intrusão... Violação de privacidade... Atentado à intimidade... Uso indevido da identidade de outrem... Num tempo em que a chamada sociedade de informação ou de comunicação empurra as fronteiras morais para limites inaceitáveis, é sempre bom recordar os velhos princípios. E senti-los, coisa que Gérard me pareceu fazer com sinceridade.
O pior é o momento em que se faz a fotografia. Gesto, aliás, que, em várias línguas, se chama “disparar”. Não é pouco, nem é pacífico. E também se diz, pelo menos em português, “tirar o retrato”. Sublinho o “tirar”... Hoje, far-se-ão muitas dezenas ou centenas de milhões de fotografias por dia. Até já os telefones tiram fotografias, nesta que é uma aliança entre dois velhos rivais, a palavra e a imagem. Parece o gesto mais banal do mundo. Parece, mas não é. A questão moral está sempre lá. Com que direito eu fixo imagens de outros, momentos vividos por outras pessoas e identidades alheias? Com que legitimidade posso eu utilizar a vida de outro? Ainda hoje estou convencido de que foi esta questão moral que reforçou a sua timidez.
Quando ele me tentou explicar as razões e o modo da sua “segunda vida”, o principal argumento utilizado para se redefinir foi o da “intrusão” ou mesmo o da “agressão”. Foi a esse propósito que ele cunhou uma frase inesquecível: aproximar-se de alguém com uma câmara fotográfica é como usar luvas de boxe para conversar! Por isso, os objectos, a luz, as formas, as composições gráficas e os elementos de paisagem apareciam, agora, com muito mais frequência do que as pessoas em planos aproximados dos primeiros anos. É uma timidez cruzada de delicadeza. Chama-se a isso fazer cerimónia. Gérard fazia.
Talvez seja esta consciência moral que faz com que, nestas fotografias, o drama esteja ausente. Como ausentes estão também o sofrimento, a violência e a tragédia. E até a pobreza inevitável dos anos sessenta portugueses nos aparece debaixo de uma relativa doçura. Gérard não era fotógrafo cortesão, nem queria vender optimismo. Mas evitava a dor nas fotografias. O que só se explica por razões morais. É esse um dos traços mais interessantes da sua obra. Renunciou ou simplesmente não recorreu aos elementos mais procurados pela fotografia, a começar pelo jornalismo e pela reportagem. Na verdade, o sofrimento, a violência, a dor, a pobreza e a guerra são fotogénicos! Infelizmente. Custa a dizer. Mas é verdade. Há uma estética do sofrimento vorazmente cultivada por muitos profissionais, por editores e por órgãos de informação. A ponto de, pelo hábito, ficarmos indiferentes ao sofrimento e de esquecermos, pela forma, o conteúdo. Quem se incomoda hoje com os ventres inchados das crianças africanas a morrer de fome e doença? Ou com os restos de corpos depois de explosão de uma mina? Ou com os efeitos iconográficos da tortura, da violação, da droga, do crime, da miséria e da doença? À força de ver, ficamos indiferentes.
Gérard não foi atraído pelo sofrimento dos outros. Pela sua moral e porque nunca foi um fotógrafo engagé. Ou empenhado. Ou comprometido. Apesar do seu tempo, próprio a esse género. Mau grado não ter gostado do que viu, em França ou em Portugal, com a guerra, a devastação e as ditaduras. Não advogou causas com a sua fotografia, a não ser a da condição humana na sua forma mais poética. Fez melhor do que fotografia de combate ou fotografia com programa. Por isso as suas imagens duram mais do que as efémeras com intenção. Interessava-se pelo quotidiano e promovia o banal e o incidental a raridade.
Gérard foi um génio da encenação. Da encenação intuitiva. Da encenação natural, isto é, da colocação, em imagem, do que o mundo lhe dava, mas aproveitando sempre a ideia de encenação, de ligação especial entre os figurantes, de relação significativa entre estes e o meio ou a paisagem. As suas personagens na paisagem são pequenas obras de arte. Poderiam ter sido imaginadas previamente. Poderiam ter sido manipuladas ou combinadas, de tal modo elas nos parecem rigorosas e minuciosas. Mas creio que Gérard nunca o fez. Ele soube captar, não construiu ou não procedeu a montagem.
A discussão sobre a escala (a dimensão absoluta e relativa das suas imagens) foi a sua última e principal contribuição para a teoria da fotografia. Tive a sorte de assistir, no Porto, à sua catedrática conferência sobre o tema. Ali relembrou a novidade da grande dimensão de fotografias que nos habituámos a ver em pequeno formato. A diferença de escala pode ser a metamorfose do sentido. Aludiu à mudança de género e de natureza que se opera quando uma fotografia que se manuseia, que se vê com as mãos, se transforma num fresco que se observa e admira. Referiu-se à enorme humanidade de um olhar num rosto grande como uma parede. Ali percebi que todas as escalas são boas, não há leis nem dogmas. Todas as escalas são boas, desde que adequadas à imagem, ao local, à manifestação, às circunstâncias! A mesma fotografia pode ter várias vidas e vários sentidos conforme as circunstâncias.
Em certo sentido, esta reflexão leva-nos à questão da liberdade de criação. E da imaginação. O Gérard foi uma das duas pessoas que me ajudou a olhar para a fotografia com mais liberdade e menos fanatismo. Formatar as dimensões? Alterar o enquadramento? Imprimir de várias maneiras? Manipular a impressão? Recentrar? Recorrer ao digital? Eis pecados que, desde que com honestidade, deixaram de o ser. Em parte, graças a ele, quando me disse que as impressões ulteriores eram geralmente muito mais interessantes do que os famosos vintages. Comecei a perceber então que o dogma é coisa de fanáticos. Caminhei do mais estrito conservadorismo para uma atrevida liberdade... Mas não deixo de encontrar, nesses mesmos vintages, um encanto e uma curiosidade que constituem, em si, um valor.
Nesta exposição e neste livro, Jorge Calado escolheu, em maioria, vintages no formato em que Gérard os deixou. Foi uma opção assumida, tem as suas razões de ser. Porque é póstuma. Porque é a maior que jamais se fez. Porque tem muitas imagens inéditas. Porque o esforço de investigação de tudo o resto está ainda por fazer, mesmo se, ao que parece, Danièle já terá feito um apurado trabalho de ordenamento. E até porque já tivemos várias oportunidades de ver algumas destas imagens em tiragens contemporâneas e nunca tínhamos visto os vintages. O importante é considerar que todas podem ser autênticas, provas de época ou contemporâneas, vintages ou tiragens ulteriores. Podem ter valores de mercado diferentes, mas isso não altera o valor intrínseco, nem a qualidade, muito menos a autenticidade.
Já que falo do trabalho de Jorge Calado. Este é um dos homens que mais admiro em Portugal. Pela sua cultura e pela sua erudição. Pelo seu contributo para a nossa felicidade. E pela sua simpatia pessoal. Este ano foi, para ele, de monumental esforço. Para nós, de encanto espiritual. Antes deste livro, tivemos o “Haja Luz – Uma História da Química Através de Tudo”, maravilhosa enciclopédia intelectual, artística e científica. Agora, um dos mais belos livros de fotografia jamais publicados. Garanto-vos que é obra, publicar os dois no mesmo ano! Obrigado Jorge!
António Barreto, Lisboa 22 de Novembro de 2011 (texto proferido durante o lançamento do livro / catálogo)
António Barreto.
Intervenção de Ricardo Salgado, em representação do Banco Espirito Santo.
Intervenção de Rui Vilar, em representação da Fundação Calouste Gulbenkian.
Também no olhar dos homens está a sua circunstância. E se há homens que tornam as águas turvas para que elas pareçam mais profundas, no olhar de António Barreto, que as fotografias deste livro desvendam, existe uma surpreendente transparência. Ou a angulosa luminosidade das coisas simples. No seu olhar, está uma biografia, porque, neste livro, há muitos anos de fotografia. E muitas circunstâncias de quem fotografou.
Hay-on-Wye, Grã-Bretanha, 1993. .
Ler a fotografia de António Barreto vai ser possível na Galeria Corrente d’Arte a partir de 11 de Novembro e até 30 de Dezembro de 2010. Na inauguração da exposição será lançado o livro de António Barreto em coautoria com Ângela Camila Castelo–Branco, “António Barreto: Fotografias, 1967 – 2010”, editado pela Relógio d’Água Editores.
Na fotografia que ilustra a capa deste livro estão dois homens a conversar, em baixo está a cidade de Montreux que os separa das águas do Lago Léman e das montanhas de Haute Savoie. Isto é, resumidamente, o que a fotografia nos mostra. Provavelmente, o fotógrafo viu mais. Na fotografia não podemos adivinhar que ele se encontrava numa estrada num plano superior e que estava acompanhado por um grupo de amigos, como verifiquei nos negativos que se seguiam. Isto vai permitir-me uma leitura diferente. O sítio permite divagar. A dois passos dali, fica o Château de Chillon, local de detenção de François Bonivard, herói da liberdade cantado por Lord Byron, que glorificou Sintra e detestou os portugueses. Com a fotografia, as associações são surpreendentes e inevitáveis. Tanto o conhecimento prévio que faz parte da cultura individual, como o conhecimento adquirido a posteriori em resultado do acesso que tive aos negativos do fotógrafo, vão influenciar a leitura das suas imagens.
Montreux, Suiça, 1970. .
O fotógrafo deslocou-se a França, num Inverno particularmente rigoroso, no ano de 1970. Foi então que fotografou Champigny. Para quem desconheça, Champigny era o maior bairro de lata da Europa, onde viviam os portugueses imigrados (os “bidonvilles” como lhes chamavam os franceses e que Gérald Bloncourt denunciou em muitas reportagens fotográficas). Era a “Gente do Salto” e “Os anos da lama” tão concretos nos documentários realizados por José Vieira. Bairros construídos com bocados de folhas de lata dos bidões do gasóleo e madeiras velhas das cofragens das obras. As casas, sem esgotos, água e electricidade, eram aquecidas a carvão cuja combustão enganava as noites prolongadas e frias. Na fotografia aqui reproduzida estão duas pessoas de costas, debaixo de um guarda-chuva negro, parecem passear-se no melhor dos mundos. Naquelas condições tão adversas, o fotógrafo surpreendeu o paradoxo. É a característica polissémica da fotografia que nos possibilita esta interpretação idílica ao depararmo-nos com um dos mais marcantes ícones da dureza da imigração portuguesa em França. Português, antigo comunista (de cuja ideologia se afastara a partir de 1968), refugiado/emigrante e já formado em Sociologia, ter-lhe-á seguramente tocado, muito para além da reportagem fotográfica, a situação dos seus conterrâneos.
Champigny, França, 1970.
Nas fotografias feitas na Argélia, em 1973, descobrimos-lhe o olhar distante, para não ser confrontado ou apenas não interferir no cenário, na narrativa, naquilo que quer fotografar. O olhar camuflado, entre olhares que se cruzam partindo de um lado e do outro, oposto na fotografia, em direcção à rapariga que se encontra encostada ao paredão na Baía de Argel. O olhar picado que observa os argelinos sentados a jogar dominó e que não se apercebem da sua presença, Argel, 1973. António Barreto quer mostrar-nos as situações, mas quer estar o menos possível nas fotografias. Como se pretendesse que aquilo que sente não interfira com a realidade captada pela objectiva. Como se quisesse ver o que os outros estão a ver e como se almejasse o cúmulo dos grandes narradores de imagens: a presença ausente. .
Joëlle Kuntz, Argel, Argélia, 1973.
Não se fica indiferente a correntes e tendências que o tenham influenciado. Alguns dos movimentos estéticos que terão contribuído para a singularidade do olhar do fotógrafo, que sempre se distanciou da fotografia feita à maneira salonista por muitos fotógrafos portugueses, foram a Straight Photography, o Realismo e a Street Photography. O exílio na Suíça foi, assim, uma janela para o conhecimento, o acesso a jornais, revistas e publicações como a Life, que apostavam na fotografia como principal fonte de informação. Foi o passaporte para o fim do obscurantismo vivido na ditadura do Estado Novo e o saborear da liberdade que lhe possibilitaram outras experiências, numa democracia europeia. .
Berlim, RDA (República Democrática Alemã), 1967.
António Barreto praticamente não faz fotografias em contraluz, preferindo explorar a incidência da luz oblíqua, que acentua a perspectiva e cria ambientes sombrios; a luz que molda os objectos e lhes realça a textura; os recortes desenhados pelas sombras; a atmosfera romântica dos interiores onde a claridade irrompe através de portas e janelas e sugere ambientes que reportam para a pintura setecentista, como no interior de uma igreja em Oxford, 1992.
Oxford, Inglaterra, 1991.
A fotografia de António Barreto (a maioria, pelo, menos) não é documental, porque aquela que diz respeito ao Douro vinhateiro apresenta-se como um núcleo especial que se destaca do resto do seu trabalho. Sei por que isso acontece, mas não vou tentar explicá-lo. Vou antes transcrever, ou melhor vou “enxertar” aqui uma parte de um texto que António Barreto escreveu em Um Retrato do Douro, em 1984: “Galgaram os montes, quebraram a rocha, fizeram terra, levantaram muros; plantaram videiras, seleccionaram castas. Sofreram o oídio, a filoxera, o míldio e a maromba, recomeçaram tudo várias vezes. Mandaram vir cepas americanas, enxertaram variedades durienses e rústicas, encontraram ou importaram remédio, o sulfato, o enxofre ou o bórax. Trataram as videiras como trataram os filhos, as adegas como as suas casas. Podaram, enxertaram, cavaram, escavaram, redraram, e nunca um desses trabalhos foi simples ou fácil. Encosta acima, é sempre um calvário. Vindimaram a cantar, para esquecer o cansaço e os calores de quarenta graus. Levaram as uvas às costas, em cestos de quatro ou cinco arrobas, em sítios tais aonde não vão carros de bois, onde se desce para o precipício e se sobe para o inferno. À noite, pisaram uvas, cortaram lagaradas, horas a fio, num dos mais violentos trabalhos de toda a agricultura, que os álbuns de turismo ou os citadinos filhos de proprietários acham pitoresco, mas que só se aguenta porque é preciso viver, porque uma posta de bacalhau cru e um caneco de aguardente aquecem o corpo e porque as mulheres, em frente aos lagares, aquecem as almas. Transportaram tudo, à cabeça e às costas, almudes de água-pé, canecos de água, vasilhas de aguardente; pedras e terra; esteios de ardósia, rolos de arame, cepas, cestos de uvas. Carregaram caros de bois, desceram os montes, entraram no rio, carregaram barcos rabelos, desceram o rio, descarregaram os barcos, carregaram os vapores, subiram o rio, levaram os rebelos à «sirga», à corda, rio acima, no que deveriam ser as galeras do Douro”. . Este longo trecho da sua autoria explica bem, julgo, a razão pela qual, este núcleo fotográfico de António Barreto centrado na Região demarcada do Douro, reúne os requisitos para ser qualificado como fotografia documental. No livro, poucas fotografias do Douro foram seleccionadas, por entender merecerem ser vistas num conjunto mais alargado.
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Douro, 1990. .
Admirador de Henry Cartier-Bresson, algumas das suas fotografias lembram claramente os trabalhos do Mestre (ou do “Génio”, como o trata num artigo de homenagem). Tal acontece com a fotografia “Jogo de Cartas na Foz do Douro” (Foz do Douro, 1990.) que, pelo enquadramento e sequência de planos, associei imediatamente à fotografia de Bresson, “Sur les bords de la Marne”, datada de 1936.
Sur les bords de la Marne, 1936. Fotografia de Henry Cartier-Bresson. .
Porto, 1997.
Também importante na fotografia é a dimensão em que nos é apresentada. Recordemos que algumas das fotografias impressas neste livro vão ser expostas noutras dimensões e provavelmente ganharão novos sentidos ao serem ampliadas. Outras ficaram a ganhar na dimensão que foram impressas no livro. Espaço, tamanho e conteúdo são condicionantes essenciais para a leitura de qualquer registo fotográfico. O fotógrafo pode inclusive explorar as possibilidades criativas ao jogar com a proporção e com a escala, como aconteceu com a fotografia das pirâmides de Gize, Egipto, 2006. António Barreto pretendeu alterar a escala de grandeza física dos objectos registados na imagem e conseguiu alterar as proporções da pirâmide de Quefrén, com cerca de 160 metros de altura, quando comparada com a esfinge de Sesheps, com 20 metros de altura e com uma pequena pedra do templo de Sesheps pouco mais de um metro acima do solo, invertendo a grandeza da proporção dos mesmos. Inteligente e curioso jogo, sobretudo se se atender à intencionalidade do fotógrafo.
Pirâmide e Esfinge, Gizé, Egipto, 2006. .
Nas suas fotografias está o homem que não se intimida com a desproporção da sua dimensão perante a imensidão da Natureza, como no Glaciar de Chamonix, França, 1970. .
Chamonix, França, 1972.
Um fotógrafo pode chegar ao fim da vida apenas com uma ou outra fotografia conseguida entre milhares de negativos. A explicação do sucesso dessas imagens estará mais nos olhos de quem as lê. No conjunto seleccionado para este livro, algumas despertaram-me maior atenção. “Os meninos na ilha de pedra”: parece uma jangada arrastada pela força da corrente do Rio Douro, 1990. “A passadeira mole”, cuja desconstrução leva a lugar nenhum: o plano picado mostra-nos uma mulher com uma criança pela mão que atravessa em passo acelerado uma réstia de geometria segura que resulta da convivência entre a ordem e o caos, Paris, 1979. “O passageiro solitário” no cais da estação de comboio de Crossharbour: a solidão que sugere a imagem é apenas aparente, pois nada do que está nela é possível sem a existência do colectivo. A cidade não está inabitada, os escritórios não estão vazios e de que nos serviria uma linha de transportes fantasma, sem comboios nem passageiros? Gare de Crossharbour, 1990. Talvez esta seja a fotografia mais marcante da dicotomia entre homem e meio, verdade e aparência, imaginação e realidade. . Poderíamos teorizar sobre a solidão observando outras fotografias, mas será a sua intenção que observemos nessas imagens a solidão ou quererá o fotógrafo despertar em nós a atenção para o abandono, a velhice e a tristeza, componentes sociais do quotidiano? Estas e outras questões são importantes quando pretendemos ler as fotografias dos outros.
Rio Douro, 1990.
Paris, França, 1978.
Londres, inglaterra, 1990. .
Das conversas que mantive com António Barreto pareceu-me ser seu intuito, intuito profundo, que a imaginação (ou seja, o que orientou a intenção do fotógrafo) não interfira com o real (aquilo que de facto está a ser fotografado). Isto é, que aquilo que transpareça na fotografia seja o mais aproximado do real e não aquilo que o próprio possa idealizar. Porque a fotografia, toda a fotografia, antes de ser imagem é concepção. E é esta complexa rede interpretativa que nos transporta à Fenomenologia de Husserl (1859-1938) ou seja, a uma abordagem conceptual ditada pelo “que se mostra em si mesmo, o que se revela”. Husserl rompe com o que até então estava estabelecido nas teorias da imagem, a maioria baseadas na filosofia cartesiana. É essa a conclusão de Jean-Paul Sartre em “L’imagination”, ensaio que apresentou em 1936 (não por acaso, é ao ensaio “L’imagination” de Sartre que Roland Barthes dedica Chambre Claire). Foi também em 1936 que Walter Benjamim escreveu “Pequena História da Fotografia”, inserida na obra Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, que posteriormente abriu caminho a uma resposta de Vilém Flusser no “Ensaio sobre Fotografia – Para uma filosofia da técnica”, 1985. A importância de lermos os trabalhos destes autores, todos sobejamente conhecidos, é a de ficarmos com uma maior capacidade interpretativa dos objectos fotográficos, isto é, ficarmos mais bem preparados para uma leitura da imagem fotográfica. Mas não há necessidade de complicarmos se o propósito for apenas o de evocar as sensações que nos provocam estas imagens.
Nazaré, 1983.
No livro, optámos por legendas simples apenas com a informação essencial, até para que a leitura das fotografias não sofresse qualquer influência. Será difícil para o observador encontrar um fio cronológico ou temático para se orientar, porque também aí tentámos fazer uma sequência estética preterindo outras soluções que, ainda que porventura mais «lineares», pudessem condicionar a leitura do público. as duas centenas de fotografias, foram intencionalmente despidas de histórias, para que cada um faça a sua história, a sua própria interpretação. Há, no entanto, que ressalvar que o olhar fotográfico de António Barreto se manifesta como um prolongamento do pensamento do sociólogo, do ensaísta, do professor e do cronista. São quase 50 anos de registo fotográfico de um olhar que transmite a mesma consciência ética e estética, que persegue os mesmos objectivos, que permite construir uma narrativa coerente, baseada numa visão própria de quem tem a fotografia também como fonte de expressão e de pensamento.
Biblioteca Nacional de Paris, França, 2000. .
O seu olhar é os cantoneiros de Sabrosa e os mineiros de Oruro. Os desempregados da Lisnave e o António Cachapuz da Divor. É a paisagem dos Andes e as vindimas no Douro. As peixeiras da Nazaré e os peregrinos de Fátima. Os glaciares de Chamonix e a praia de Fontanelas. O memorial ao Holocausto em Berlim e as Pirâmides de Gizé. A menina de M’ Zab na Argélia e o rapaz em Pizac no Peru. O Inverno em Champigny e as férias no Cairo. A Muralha de Adriano em Inglaterra e a Ópera La Fenice em Veneza. A Piazza del Popolo em Roma e o Arco da Défense em Paris. É Oxford, Hay-on-Wye, Paris, Roma, Budapeste, Praga, Berlim, São Petersburgo, Lisboa, Lima, Patagónia, Azambuja, Genebra, Porto e Vilnius. São calceteiros, médicos, pescadores, estudantes, camponeses, empregados de escritório, metalúrgicos, professores, padres, mineiros, militares, polícias, advogados, turistas, é gente anónima. É testemunho. . Seleccionadas entre alguns milhares de negativos e diapositivos a preto e branco (12.442), organizadas e contextualizadas as fotografias escolhidas surgem necessariamente como uma entre muitas possibilidades.
Ângela Camila Castelo-Branco, Lisboa 20 de Agosto de 2010 .
(Excertos do texto: “Ler Fotografia” de Ângela Camila Castelo–Branco in “António Barreto: Fotografias, 1967- 2010”). .
António Barreto acompanhou a produção do livro na gráfica Guide.
António Barreto. (Fotografia de Ângela Camila Castelo-Branco)
Angela Camila Castelo-Branco (Fotografia de António Barreto).
A exposição estará patente ao público de 12 de Novembro a 30 de Dezembro de 2010.
Das 14:00 às 19:00 de segunda a sábado.
Galeria Corrente d'Arte
Av. D. Carlos I, nº 109 - 1200-648 Lisboa Tel. 213 941 722 correntedarte@sapo.pt/ Abertura: das 14.00 às 19.00, de segunda a sábado
Em 23 de Outubro de 1998 a revista Indy, suplemento do jornal Independente, publicava “Um olhar português”, um artigo de António Barreto sobre o fotógrafo Gérard Castello-Lopes. Assim escrevia o sociólogo / fotógrafo a propósito de “Lisbonne d’un Autre Temps” – (“Lisboa de Outras Eras”), uma exposição patrocinada pelo Instituto Camões de Paris em 1998.
“Um olhar Português”
Ao contrário de Fernando Pessoa, Gérard Castello-Lopes não tem heterónimos, tem vidas. Várias e sucessivas. Falo do fotógrafo, que é o que nos traz aqui, não do homem, cuja unidade parece maior e não cabe em meia dúzia de páginas. Para mal dos nossos pecados, e dos dele, espero, não nos deu tantos anos de fotografia quantos os que leva de vida adulta, como deveria ser. Começou a fotografar, em 1956, com mais de trinta anos, idade difícil para uma arte que exige candura na aprendizagem. Fotografou durante uma década, talvez menos. Depois, parou. Perdera a ousadia. Não se sentiu mais capaz de, afirmar, agredir as pessoas na rua, fotografar quem não o deseja. Tanto mais quanto considera que, naturalmente, ninguém quer ser fotografado. Em todo o caso, ninguém o quer ser de surpresa, por um estranho. Durante vinte anos, pôs de lado as Leicas. Percebe-se hoje, pelo que diz e como fotografa, que o sofrimento não o abandonou. Com, todavia, um lenitivo: estudou, pensou e amadureceu. Em meados dos anos oitenta, regressou. Para nosso bem. E dele, espero. Os bons fotógrafos são quase todos tímidos. Conheço bastantes. Alguns são-no mesmo exageradamente. Julgo percebê-los. Fotografar substitui o acto de falar com os outros. Conhecê-los. Viver com eles. A fotografia, a imagem preservada, será o modo a que tímidos recorrem para manter uma qualquer relação com o real, congelado esteja este. Todavia, os tímidos não são grosseiros, bem pelo contrário. É, muitas vezes, a delicadeza que os fez assim. Os verdadeiros tímidos não têm medo, receiam magoar. O que quer dizer que se interessam: pelo mundo, eventualmente pelos outros. Creio que Gérard Castello-Lopes será um “grande tímido”, daqueles que esconde a insegurança na erudição e na ironia. Mas, estranhamente, fala mais do que fotografa. Escolhe as suas palavras, pesa as frases e selecciona citações. Com o mesmo cuidado com que deve separar as suas fotografias, elegendo as melhores, muito poucas, deixando sem vida a maior parte. O que há de singular, com Gérard, é que foi a timidez que o levou, não a fotografar, mas a deixar de praticar aquele que poderia ter sido o seu ofício. Esta será a primeira exposição daquele longo período de “pousio”, que aliás, preparou uma nova fertilidade. Mas há uma segunda explicação, que não sei se é dele, mas tenho por certa: o real limita a sua criação. Sempre foi. Este grande amador viu-se um dia preso pelo real, condicionado pela fotografia e fechado dentro das fronteiras do programa da “arte empenhada”. Sem necessidade de, da sua arte, fazer profissão, preferiu abandonar. Até que o mundo dos anos oitenta e uma sabedoria longamente decantada lhe fizeram ver que a criação não era pecado e que a fotografia, apesar do constrangimento essencial, permitia voar e autorizava que o espírito perdesse peso e amarras.
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. Gérard, cultor de paradoxos, fotógrafo parcimonioso, falador impenitente, ajudou-me involuntariamente a consolidar uma opinião que escondi durante anos: uma imagem não vale mil palavras. Nunca gostei desta invenção de manipuladores de consciências, de publicitários e de provocadores de emoções fáceis. As imagens, e conheço algumas, podem estar na origem de choques emocionais, levar-nos às lágrimas, causar-nos nojo e estimular-nos na revolta. Mas não substituem a palavra. Enriquecem-na, provocam-na e complementam-na. Dispensá-la? Nem pensar. Hoje sabe-se que a imagem, com arrogantes pergaminhos de verdade, pode ser a maior mentira de que os homens são capazes. Com a imagem se faz, desfaz e refaz a história. Mesmo as fotografias realistas, testemunhos, verdadeiras na sua realidade, fortes na sua crueldade, podem esconder mundos e outras verdades. Ou antes, escondem mesmo. De todas as guerras, de todos os regimes políticos, de todos os amores sobram fotografias que não são tudo, nem toda a verdade, nem só verdade, por vezes nem sequer verdade. As fotografias de Gérard pedem mil palavras. As dele, de preferência, a que, com volúpia, nunca se nega. Mas também as nossas. As de quem o vê ou ouve. As de quem observa as suas imagens. As dos outros artistas. E as dos poetas. Juntem-se estas fotografias lisboetas aos poemas, não de Fernando Pessoa, mas de Alexandre O’Neill, e veremos que é o casamento feliz. Não há fusão, igualdade ou sobreposição. Há sensibilidades próximas. E uma infinita e doce ironia de que só são capazes os que não se levam demasiado a sério. Apesar da diferença e do confronto. E do conflito. A Lisboa de Gérard é quase a Lisboa de Pessoa. Física e cronologicamente. As ruas, o estendal, as crianças, os velhos e os burgueses podem ser os mesmos. Uma ou duas décadas separam ambas. Para o tempo, era pouco. Mas estética e humanamente, a Lisboa de Gérard não é a Lisboa de Pessoa. A cidade de Pessoa é triste, como ele próprio. Irreal como o poeta. “Sem corpo”, disse-me um dia Gérard. É uma cidade que Pessoa quereria “triste e alegre”, mas que é apenas a “cidade da minha infância pavorosamente perdida” (Álvaro de Campos). Lisboa para Pessoa é “o meu lar” (Bernardo Soares). Lisboa é uma aldeia com medo de parecer cidade. Lisboa é o amor da sua memória, a memória do nunca conheceu mas inventou. Lisboa é a aldeia e o espaço que nunca teve. Lisboa é geografia inventada para um espírito sem carne. Lisboa é um heterónimo.
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. A Lisboa de O’Neill é uma cidade. Como a de Castello-Lopes. Matreira e empertigada, mas cidade. Ridícula e aperaltada, com vergonha de parecer aldeia, mas cidade. Decadente, mal arrumada e com roupa a secar ao sol, mas cidade. De calcário, estuque e azulejos. De casais a passear na Baixa. De chefes de repartições com fatos de três peças. De faias e malandros. Do cego sincero e do cego que vê com olho maroto. De miúdos a jogar à bola e de cavadores diante da Torre de Belém. É a cidade que olhamos, que ambos olharam com ternura e raiva. “Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui, na terra onde nasceste e eu nasci?” Tenho a certeza de que Gérard Castello-Lopes, ao ler este verso de Alexandre O’Neill, pensa que é consigo. A liberdade de Castello-Lopes foi também a sua prisão. Pelo menos viveu-a como tal. Nos anos cinquenta em Portugal não se podia ser inocente. Nem a liberdade interior, refugio de tantos criadores, era possível. Ainda por cima, para alguém que queria viver com a imagem. A liberdade, nas décadas do realismo e do empenhamento político ou moral, era inseparável da solidariedade. Para ambas, o outro e os outros estavam no centro do mundo. Mas, nem todos, aliás. Não era a condição do homem que estava no centro do mundo. Mas o homem e sua condição. Quer dizer, o oprimido, o pobre, o trabalhador e o resistente. A “família do Homeme” parecia, e talvez fosse em certa medida, uma armadilha ideológica dos poderosos. Se havia artes, letras e formas de expressão para as quais o empenhamento e o real eram difíceis ou discutíveis (a musica, a dança...), para outras, eram imediatos e necessários. Para a fotografia, era a sua essência. Naqueles tempos, o mito do real dominava. Nem tempos de certezas. A principal era real. Este bastava para denunciar as injustiças. Por imperativo moral, por espírito do tempo e talvez porque lhe faltasse o talento da pintura, Gérard Castello-Lopes fez o seu programa de empenhado e realista. Estudou Cartier-Bresson e Eugene Smith, fez deles os seus mestres. Compreende-se agora que a eles nunca se limitou e que há, na sua fotografia, uma tensão libertadora, uma pulsão para transgredir as normas e as regras. Foi a sua primeira vida. Desempenhou-se durante aqueles poucos anos, magistralmente. São desse tempo as fotografias reunidas neste conjunto inspirado por Lisboa. São um formidável testemunho daqueles anos portugueses. Não são documentário, que Castello-Lopes não foi jornalista. Mas são exemplo e prova da experiência social de um artista. Estas fotografias mostram já que o seu autor não está totalmente à vontade dentro de fronteiras do realismo militante. O universal espreita em cada imagem de circunstância. Em todas elas, a criação parece empurrar a realidade. Fotografar o trabalhador, o pobre, o digno oprimido ou o vilão satisfeito pode ser o mesmo que agredir o ser humano. Mas programa empenhado exige a agressão, pois permite o testemunho. O fim, nobre, vale os meios, duvidosos. O Fotógrafo rendeu-se. Abandonou a sua arte. Viveu mais de vinte anos a lutar contra o seu excepcional talento. São décadas de silêncio fotográfico. Ou de cegueira auto-infligida. Desta sua segunda vida sofremos nós: fomos esbulhados de uma obra de criação de que nunca seremos compensados. E os portugueses bem precisavam dela. Com reduzidas tradições fotográficas, com poucos talentos, com décadas de arte e cultura dirigidas (pelo Estado sobretudo, mas pela oposição também, por vezes...) e com uma eficientíssima censura do espírito, Portugal ficou pobre neste que é o modo de expressão do século XX, a imagem.
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A terceira vida de Gérard começou nos anos oitenta. Amigos sabedores e de gosto fotográfico exigente foram acordar as “imagens latentes”. Ou jazentes, com mais propriedade. Voltaram a dar-lhe vida, isto é, mostraram-nas. Viu-as quem quis, percebeu-as quem pôde. Os mais livres apreciaram-nas como grande descoberta. Curiosamente, o efeito não foi o de uma ressurreição mas o de um renascimento. A exposição do seu passado, permitiu-lhe romper com ele. Com uma nova linguagem e um novo programa. Deixou de agredir as pessoas. Já não sente necessidade de, pela imagem, testemunhar a condição humana. Retornou com mais liberdade, a pulsão criativa. A natureza, os objectos, a matéria, as formas e as sombras povoam as suas fotografias contemporâneas. Mas atenção: olhe-se atentamente para estas novas imagens. Os corpos ganham movimento. A luz e a sombra transformaram-se em objectos e sujeitos de desejo. A leveza e a agilidade surgem como qualidades dos pesos mais pesados e dos materiais mais inertes. Não conheço uma fotografia que não tenha um vestígio animado. Seja pela humanidade dos objectos, seja pela presença discreta, afastada, imperceptível, do indivíduo e da sua acção. Seja porque Gérard, à sua conta, decidiu animar e soprar-lhe vida. Foi possível corrigir-se, mas manteve-se sem emenda.
Gérard Castello-Lopes por António Barreto, in revista Indy de 23 de Outubro de 1998, Jornal Independente .
Este espaço pretende ser de opinião e entretenimento. “Grand Monde" da imagem e da fotografia em Portugal. Vou tentar escrever sobre fotografia e imagem. Vou também publicar outras postagens mais dispersas que pelo facto de estarem inseridas noutras temáticas e abordarem outros assuntos, que não os da imagem e da fotografia, nem sempre chegam ao nosso conhecimento. O "Grand Monde" é o mundo da imagem e da fotografia.
Angela Camila Castelo-Branco