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A motivação do início vai desaparecendo com o desenrolar da tarefa. Falo de quando nos propomos mudar meia dúzia de estantes de uma sala para outra. Estimamos que o empreendimento se concretizará em poucas horas, um a dois dias no máximo. Depois, a coragem vai esmorecendo imbuída no cansaço das semanas que vão surgindo uma após outra enquanto os livros parecem nascer do soalho envernizado. De cada vez que descemos o escadote, para o voltar a subir e a descer e a subir de novo, surge um aí, um suspiro, um lamento.
– É uma praga. Nunca mais acaba!
Isto sem contar-mos com a guerrilha movida pelas recordações, um verdadeiro Vietname. Este... (“Um Homem não chora?” de Luís de Sttau Monteiro), deu-me o meu pai em Agosto ou Setembro de 1975, tinha eu pouco mais de 15 anos e perguntei-me logo se esconderia alguma mensagem! E este...(“C’est gai, la Pub” de Jacques Séguéla), o mesmo dos anúncios da Citroen, amigo de Mitterrand, que lhe emprestou um porta-aviões francês para um anúncio de publicidade e que viria a formar a RSCG (Bernard Roux, Alain Cayzac, Jacques Séguéla e Jean-Michel Goudard), hoje Euro RSCG. Nos tempos do “La France avance” e do “Touche pas a mon pote” do SOS racismo que vivi entusiasticamente. Está todo rasgado, Ângela tinha acabado de mo oferecer, quando numa crise de ciúmes o despedacei em mil bocadinhos. Vinguei-me dela, nele... Ainda o guardo, vá lá saber-se porquê! Aquele...(“Parábolas e Fragmentos”, 1956 de Franz Kafka), encontrei-o no Ecoponto (lixo), e levei-o para casa. É uma edição brasileira limitada de apenas, 300 exemplares, tradução de Geir Campos e está em belíssimo estado. E aquele, o livro da minha vida ( “O fio da navalha” de Somerset Maugham). E este...(“V0razmente Teu” de Clive Staples Lewis), estas cartas do inferno, que ainda não devolvi ao meu colega José Sacavém, já lá vão dez anos. Os livros não se emprestam. Talvez!
Onde eu queria chegar era à (“A era do “Orpheu”” de Nuno Júdice), lembro-me que quando o comprei foi a capa de Jorge Colombo a chamar-me a atenção para este trabalho que, segundo Júdice “pretendia mostrar o modo como foi vivida na época a ruptura que a nova geração literária provoca através de ‘Orpheu’”. Mas hoje, sentado no cimo do escadote, tomando folgo, olho para o poeta num auto-retrato na contracapa. Nuno Júdice segura uma máquina fotográfica junto ao rosto. Estamos provavelmente a ver a sua imagem reflectida num espelho. Que nos pretendia dizer o poeta? Que também fotografava? E se é o caso, o que viram os seus olhos, desde esse dia até hoje, através daquela objectiva ou de outra qualquer? O que vêem os olhos dos poetas. Será que vêem o mesmo que nós, simples mortais? Não creio.
Volto a descer e a subir o escadote. Caramba, nunca mais acaba!
- Ângela, passa-me aquele ali ao fundo, vá lá, não te ponhas a lê-lo agora...
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