quinta-feira, setembro 13, 2007

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O Boletim Architectonico e de Archeologia
da Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes


Aos domingos de manhã gosto de ir à “Versailles” a pastelaria, na Av. da República em Lisboa desde 1922, tem um quê de francês e não é apenas o nome. Quem lá vai, procura um certo “chic”, aquele “glamour” nostálgico de uma França que já não existe. Confesso que o que me atrai nesta casa são os croquetes, cedinho, ainda quentinhos, a desfazerem-se na boca. Aceito que existam motivos mais nobres para se gostar da Versailles. Uma das poucas casas sobrevivente da Lisboa romântica, pelo menos a única que ainda me encanta. Apesar de a minha juventude ter estado mais ligada a outros cafés de Lisboa como: a Mexicana, o Vá-Vá ou o Luanda que ainda existem, ou o desaparecido Café Colombo ao lado do não menos histórico Galeto, que foi há dias fechado pela inspecção de saúde parece que por causa do bom gosto da bicharada; ou ainda o feliniano Salão Imperium ali nas escadinhas de Sta Justa, prostrado aos pés do elevador de Eiffel. Naquele tempo, o Dino e o Rodolfo marcavam presença por volta das cinco da tarde e encantavam-me na minha inocência. Subia-se uns degraus e estávamos na Maçã onde a Ana Salazar se iniciava com trapinhos que trazia de Londres. Quem não gostava ia aos Porfirios, (Susana Larisma. Jornal "Público", 23 de Setembro de 2001). Menos ousados, ainda assim, a loja de Porfírio Araújo e filhos, na esquina da rua da Vitória, parecia-se com uma discoteca na decoração e na música alta. As jeans eram ainda uma miragem, compravam-se as mini-saias, os “collants” com padrões e cores extravagantes e as bombazinas e os veludos cotelê com várias espessuras. O tempo não perdoa, hoje em matéria de encantos temos de ir ao Porto, ao Café Guarany (o café dos músicos) ou ao Magestic, ambos adquiridos pelo empresário Barrias, um homem de qualidades humanas superiores que fez fortuna nas favelas do Rio de Janeiro com uma pequena mercearia, - e muito trabalho. Barrias, recuperou o Café Magestic a partir de uma fotografia que pediu ao seu amigo Manuel Lázaro Santos Silva, proprietário da Foto Beleza desde 1979 e que tinha no seu espolio as chapas em vidro da inauguração do estabelecimento em 1921 ainda com o seu primeiro nome “Café Elite” que durou apenas um ano. A 31 de Julho de 1922 passa definitivamente a chamar-se Magestic. Da Foto Beleza falarei outro dia, com mais paciência, aquilo tem que se lhe diga. Eu sei do que falo. Também não são os croquetes da Versailles nem os Porfírios do Sr. Araújo o assunto da história de hoje.
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Ao Largo do Carmo, aquele onde o Cap. Salgueiro Maia prendeu o Pres. do Conselho Marcelo Caetano que dali foi transportado num chaimite para que a população em fúria – os mesmos que dias antes o veneravam, não o estropiassem ali mesmo dando largas a anos de frustração e recalcamentos -. Nem tudo era medíocre e mesquinho, nem todos os que ali estavam o faziam levianamente. Honra seja feita a Francisco Sousa Tavares, com megafone na mão a acalmar a maralha. E a tantos outros que apesar de terem sido vitimas de um regime hediondo souberam ser misericordiosos quando da sua queda. Nem só de cravos viveu a revolução!

Dizia eu, ali ao Largo do Carmo ficava a Associação dos Architectos Civis Portuguezes a que, em 1874, o Rei D. Luís I concedeu o titulo de Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes, assim passou a ser denominada a actual AAP - Associação dos Arqueólogos Portugueses. "Remonta à longínqua data de 22 de Novembro de 1863, no decorrer de uma reunião de 8 arquitectos, a génese da mais antiga instituição de arqueologia existente na Península Ibérica.", escreve A. Bordalo Sanches no site digital do Clube Nacional de Filatelia, onde podemos ler outras informações sobre a AAP.

De facto, a associação foi fundada em Lisboa em 1863, e estabelecida na antiga Igreja do Largo do Carmo, mais exactamente nas ruínas do Mosteiro de Nossa Senhora do Monte do Carmo. Com o intuito, entre outras coisas, de fundar um Museu Arqueológico, onde se reuniriam objectos de arte dispersos pelo reino. Relíquias que a mão do tempo e a barbaridade dos homens têm feito ruína, como nos diz Ignacio de Vilhena Barbosa no n.º 1 da 2.ª série do Boletim Architectonico e de Archeologia, em 1874. Convém mencionar que, o Boletim da Associação teve várias séries entre 1866 e 1921. Seria importante fazer um levantamento das albuminas oferecidas nos boletins desta associação. Nos 12 fascículos da 2.ª série, publicados entre 1874 e 1876, o boletim oferecia em alguns dos números, albuminas de peças do acervo desta associação. A primeira dessas fotografias executadas pelo sócio honorário, o fotógrafo Henrique Nunes, foi uma albumina que mostra um sarcófago romano descoberto na Estremadura. No Boletim podemos ler as vicissitudes por que passara a obra então documentada e que não me escuso a reproduzir este excerto: “ Fomos assas felizes em haver descoberto em 1868 na Quinta da Gafa, em Alcobaça, este sarcófago (Albumina de Henrique Nunes); estava desprezado e enterrado no estrume, a fim de ficar em altura suficiente para que animais suínos pudessem tomar o seu sustento, que dentro dele se lhes dava!”. Nem mais! A obra está aí descrita ao pormenor. Quando foi pela primeira vez descoberto, por um agricultor que plantava uma nova vinha, em 1790, o sarcófago estava no Valado dos Frades, no Couto de Alcobaça.
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No Boletim nº 1 (1874), ficamos a saber da oferta feita pelo Rei D. Fernando a esta Associação de “...uma colecção de 39 Photographias tiradas dos objectos principais e executados por artistas portugueses, da riquíssima galeria que sua Majestade possui no palácio das Necessidade; objectos que figuraram na exposição de Viena d’Austria no ano findo”, e que poderiam então ornar a associação como era desejo do Rei.

Também, “Na sessão da assembleia geral de 13 de Julho (de 1871) se deliberou formar-se um Álbum com os retratos em photographia dos nossos sócios amadores, sendo assinados com o próprio punho do respectivo sócio.”.
A 6 de Maio de 1875, ficamos a saber pelo relatório dos trabalhos da associação, publicados no Boletim n.º 6 na página 90 o seguinte: “Tendo recebido o conselho um pedido do photographo francês o Sr. Pomard, para tirar a photographia das naves deste edifício, acompanhado duma carta em que se expressa inconvenientemente, deliberou o conselho por unanimidade que, lhe fosse negada a licença”. Fico curiosa sobre o conteúdo da carta.

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Entre as albuminas executadas pelo fotógrafo Henrique Nunes e oferecidas no Boletim, encontramos no n.º 9 a máscara encontrada na Necrópole Romana descoberta em Alcácer do Sal em 1874. (Esta albumina está numerada como sendo a estampa n.º 13 e na página 131 do Boletim, onde descrevem a obra, por lapso identificam-na pelo n.º 14). “Preparando-se um terreno para um calcadouro de uma eira em Alcácer do Sal, fez descobrir uma Necrópole da época romana, na qual se acharam diversos objectos de barro, bronze e ferro, e igualmente uma máscara de terra cotta coberta de estuque colorido e em bom estado de conservação...” e apesar de “Posto que fosse designada como máscara, todavia ela representa o retrato de um indivíduo, do qual as suas cinzas estavam encerradas na maior urna que foi descoberta também nesta mesma ocasião e estando encostada a ela faz acreditar seria o retrato do defunto. Os romanos tinham o costume de mandarem tirar a mascara das pessoas falecidas, em barro ou cera , para cobrirem o rosto do falecido durante o tempo que os despejos mortais ficavam expostos no vestíbulo de suas casas antes de serem consumidos pelo fogo, a fim de se conservarem a memória de seus parentes, guardando essas mascaras na família.”

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O túmulo de El-Rei D. Fernando, foi também reproduzido pelo fotógrafo Henrique Nunes. Em duas albuminas o fotógrafo reproduziu o sarcófago e a parte superior do túmulo do séc. XIV. Quem conhece o túmulo, sabe que a sua parte superior é facetada dando-lhe uma forma cónica, razão que levou a adopta-la para arrumo de celas de cavalos, que aí eram pousadas quando não estavam no lombo destes. Assim podemos observar descrito no Boletim n.º 8: “É pena que apresente algumas partes já arruinadas em um dos seus lados, destruição causada pela cobiça de rapina durante a guerra com estranhos e, e por ocasião das nossas antigas discórdias civis. (...) os frades mandaram serrar as cabeças dos quatro quadrúpedes que serviam de pés ao tumulo, como se pode verificar, para que ele ficasse unido com a parede da empena do portal. (...) Ultimamente serviu a mimosa campa abaulada de cavalete para as selas velhas dos cavalos do regimento de cavalaria, então aquartelado no edifício do extinto convento. Além disso os soldados divertiam-se em tirar os olhos e quebrar os narizes dos bustos que ornam esta obra prima de escultura, e já em 1834 Almeida Garret lastimava não existirem dentro deste tumulo os despojos mortais D’el-rei D. Fernando!(...)Por um mero acaso salvou-se de ser mutilado o lado oposto, por ter ficado resguardado pela parede, sendo desta face donde se tirou a photographia da estampa agora publicada neste número” .

Fazem ainda parte desta 2.ª Série do Boletim da Associação, uma albumina da maqueta/modelo para a restauração da Igreja dos Jerónimos em Belém, delineada pelo arquitecto Joaquim Possidónio Narciso da Silva em 1867 e também uma outra albumina da maqueta do Hospital Militar de Macau.

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A Associação de Arqueólogos Portugueses possui algumas espécies fotográficas únicas, alguns destes documentos estão à guarda do IMC - Instituto dos Museus e da Conservação, (IMC –Decreto-Lei 97/2007, de 31 de Março), que resultou da fusão do IPM- Instituto Português de Museus e o IPCR - Instituto Português de Conservação e Restauro. Em boa hora lá foram parar, porque as condições exigidas para a conservação deste tipo de documentos, obrigam a algum investimento que nem todas as instituições podem fazer, nem tal se justifica em espólios de pequenas dimensões. Cabe ao estado providenciar alternativas que possibilitem a conservação e preservação do património fotográfico nacional.

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Ângela Camila Castelo-Branco

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