(…)
Ernesto de Sousa encontra-se com Joseph Beuys…
…assim, para lá de todo o pudor:
ES: Nascemos ambos em 1921, eu conheço-te razoavelmente. Tu não me conheces. Achas bem?
JB: Acho péssimo.
ES: Conheces algum português?
JB: Sim… 0 Pinheiro, o Costa Pinheiro!
ES: Pois… que vive e trabalha em Munique. Também o conheço.Afinal começamos a ter algo em comum… de qualquer maneira, terei que te conhecer melhor. A primeira pergunta que quero fazer é muito importante: Consideras-te uma pessoa séria?
JB: Sim, sou uma pessoa muito séria… - Aqui Beuys suspende-se e afirma depois com uma grande simplicidade: - mas também sou um «clown».(Um clown. Sabia Beuys o profundo respeito que eu tenho pelo «clown»? Tinha que saber. Almada Negreiros também era assim um pouco «clown» e isso não foi uma das razões menores do meu fascínio, posso dizer do meu amor. Vou mais longe: um intelectual que se preza e que se toma cem por cento a sério nesta sociedade, neste sistema, é para mim o último dos patetas. Ou talvez seja um ingénuo. «Um ingénuo voluntário», dizia Almada. E talvez não seja por acaso que num grafitti desenhado sobre um cartaz de Beuys alguém escreveu: Sou um ingénuo!)
ES: Tu fazes «propaganda política». A mim parece-me que propagas sobretudo uma ideia utópica. Acreditas que a utopia é necessária?
JB: Sim. Mas devemos encarar a utopia no domínio das possibilidades reais. Há uma utopia negativa que devemos riscar. E uma utopia positiva. Essa, embora mantendo-se como utopia, deverá também entrar no domínio das possibilidades reais. (E com uma escrita característica e impressiva traça um esquema desta ideia no meu caderno. Compreende-se que os esquemas de Beuys tenham tanta importância para ele. São elementos do espaço socrático que conduz ao diálogo, ao d i á 1 o g o, ao D I Á L 0 G 0).
0 Diálogo
JB: Nunca deixei de atingir o diálogo intenso. O resto, as acções, as obras, a «arte» é secundário. Pouco me interessa a arte senão na medida em que ela propicia o diálogo com o homem. Esse diálogo sempre o consegui… Algumas vezes tive que ouvir insultos, sarcasmos, mas isso também foi sem importância.
ES: Apesar da roupagem «política» da tua propaganda, julgo que ela é sobretudo moral porque se dirige a cada um dos teus interlocutores. No entanto o que pensas da teoria científica das relações de classe social tal como tem sido desenvolvida no pensamento moderno?
JB: Penso que é uma teoria muito importante, e decisiva, sem a qual não se pode entender a sociedade actual. Mas penso que o meu trabalho é outro, paralelo a esse mesmo. Neste meu domínio o que me preocupa é uma espécie de terapêutica social, activa e metodicamente empreendida. Dessa terapêutica faz parte uma informação inteira, cuja vocação é dar o mundo todo ao mundo: homens, animais, história, o espaço, as pedras, o tempo, as plantas… É aqui que intervém a arte, como um meio de comunicação. Que esta tarefa se transforme em política, pois bem, assim tem que ser. É o destino de tudo o que pretende a uma capacidade global. Dar o mundo ao mundo. É como dar a não-forma à forma e vice-versa. Nas minhas acções anteriores sempre me preocupei em mostrar que no fundo de tudo isto havia uma energia comum - e que nos devíamos lembrar desta energia comum que resume tudo. Eu e tu, por exemplo.
ES: Sim, falaste em eficácia…
JB: A eficácia é segundo a capacidade de cada um. Mas não creio que a eficácia aconteça seja no que for se não for acompanhada dessa confiança total. Que tem que ser restabelecida, é essa a terapêutica social.
ES: A arte surge assim como um meio. Consideras-te um artista?
JB: Sim e não. (E Beuys inclina-se sobre o meu caderno e escreve:
ANTIARS + ARS = ARS
… a fórmula que resume não tão facilmente como se pode pensar o problema da anti-arte. Porque uma transformação semântica importante não é um eterno retorno dessorado. Que importa que as palavras fiquem se o mundo é outro. É esse outro que nos compete pressentir).
ES: Tu dizes que a revolução somos nós. Nós todos. Então os carrascos também entram na tua classificação. «Eles» também são a revolução…
JB: Também são… em absoluto. Mas digamos que têm poucas probabilidades de se realizarem como revolução. É isso; têm muito poucas probabilidades… Eu devo falar de todas as forças que se relacionam com o homem: as boas e as más. Aqui a posição do artista aproxima-se de uma posição antropológica: recolocar o homem no todo é ter consciência daquilo que lhe está ligado pelo baixo, como daquilo que lhe está ligado pelo alto. Só assim o homem terá força para as grandes transformações. Da passagem da não-forma à forma (um pedaço informe de cera seca adquire a forma arquitectónica do que a envolve), do movimento, da vontade. A vontade, o sentimento e a tomada de consciência. É o fim das minhas acções, que pretende atingir a confiança total.
ES: Joseph Beuys, vives numa sociedade que pretendes combater, e instalado nela, serves-te dela. Mas como é isso possível? És rico? Tens meios próprios?
JB: Rico não sou, mas ganho à vontade para fazer o que quero… Eu sou escultor, sabes? Eu sabia. Tinha visto o essencial da «obra» de Beuys no Museu de Darmstadt, como parte da espantosa doação do industrial Ströher à cidade. Ströher fez uma combinação com Beuys segundo a qual este lhe forneceria um duplo de cada «obra». Assim o Museu tem o carácter de colecção científica, o que está de acordo com as «obras» em questão e com as intenções principais de Beuys.Escultor. Escultura de arte-total: pega em qualquer coisa, diz o Ben Vautier. Essa escultura pode ser materialmente nada, mas corresponde-lhe sempre uma imagem mental: todo o mundo à volta mudou. («A cada imagem nova, um mundo novo», já explicara o Bachelard.) A entrevista terminava. Prometi a Beuys que me apresentaria melhor quando estivéssemos mais preparados para isso (a máscara). Entretanto mandei-lhe recados para amigos que não me conhecem também, Spoerri, Broodthaers, Filliou… «J’ai enfin le droit de saluer des êtres que je ne connais pas» (Apollinaire, Le musicien de Saint Merry). A propósito de Spoerri, falou-se de peixes com miolo de figo do Algarve, eat art. Mas isso já não interessa aos leitores de República.
Nem, tão pouco, aos leitores do Grand Monde. O que interessa realmente reter, é este sítio
http://www.ernestodesousa.com/, onde podemos estudar uma parte da história da fotografia em Portugal. Numa iniciativa inédita e sem paralelo na cultura portuguesa, Isabel Alves disponibiliza a todos, como dizia Beuys “dar o mundo todo ao mundo”, o espólio de Ernesto de Sousa. A companheira dos últimos vinte anos de Ernesto de Sousa, procura perpetuar-lhe a memória. Que arribe a bom porto...
O carácter fundador e transdisciplinar das acções desenvolvidas por Ernesto de Sousa, tal como fica a seguir brevemente anotado na sua biografia, constituem-nas como obras abertas de que a investigação académica, a edição e a reedição de textos ou outros registos ou o exercício da crítica podem ser considerados as mais evidentes e desejáveis consequências. Em 1990, na sequência da decisão de organizar e salvaguardar o espólio de Ernesto de Sousa, a partir do projecto CEMES, foram estabelecidos protocolos com a Biblioteca Nacional, (
Inventário BN), para o tratamento e microfilmagem da produção escrita do artista, identico protocolo com a Cinemateca-ANIM, em relação ao espólio fílmico, e com o Arquivo Nacional de Fotografia (hoje Divisão de Documentação Fotográfica do IPM), para salvaguarda de
uma parte do acervo fotográfico. O projecto CEMES aguarda encontrar a Instituição interessada no importante acervo de interesse público.
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Porque entendo, que qualquer reprodução possa ser entendida como abusiva e apesar de com este post apenas estar a homenagear a obra de Ernesto de Sousa e este Sítio que inaugura agora, como se se tratasse de um verdadeiro “Museu Virtual da Obra de Ernesto de Sousa” que Isabel Alves põe à disposição de todos, fica aqui registada a disponibilidade imediata para anular este post se esse for o entendimento de Isabel Alves e da CEMES.
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Ângela Camila Castelo-Branco, APPh.
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