Um dia destes o António enviou-me pelo correio um Almanaque Português de Fotografia de 1958, era o terceiro ano que se editava. Deparei com um aviso dos CTT na minha caixa do correio. O volume, segundo a missiva aviso, era de grande dimensão! Do que se trataria? Só o saberia na segunda-feira, pois que já passava das seis da tarde quando cheguei a casa. Deixei passar o sábado e o domingo tentando não pensar no assunto. Segunda-feira, em pulgas, arrumei o carro a alguma distância da loja dos CTT. Tirei a senha e, enquanto esperava, o empregado atendeu uma senhora que queria um livro do Miguel Sousa Tavares “O Rio das Flores”; logo a seguir, uma mãe comprava para o filho uma bola de futebol Portugal Tam.º1 e uma T-shirt Bem Me Quer – Senhora. Havia para venda a maior variedade de produtos, cheguei a duvidar que ali se vendessem selos ou enviassem cartas. Seria ali que tinha de levantar a encomenda postal! Quando finalmente chegou a minha vez, abri ali mesmo a surpresa do meu amigo. Um Almanaque de fotografia. O Almanaque tem algumas curiosidades e um artigo de um dos maiores fotógrafos portugueses. Em homenagem a Augusto Cabrita, aqui transcrevo “A Luz e o Ritmo na Fotografia”.
A Luz e o Ritmo na Fotografia
Quando o fotógrafo por um impulso emotivo, não se contenta apenas em reproduzir mecanicamente a realidade e deseja interpretá-la com um cunho vincadamente pessoal, tem que atende fundamentalmente, aos elementos essenciais da composição fotográfica.
Trataremos, neste artigo sobre composição, de dois desses elementos básicos da arte de compor: a Luz e o Ritmo.
De facto sem luz não pode haver fotografia, e é da sábia escolha desse elemento que o fotógrafo dá plasticidade às imagens. Não basta, pois, - como é vulgar ouvir dizer-se – que uma fotografia “resultou” devido à acção única e exclusiva de um bom fotómetro!...
A célula foto-eléctrica, quanto muito, é um óptimo auxiliar de que o fotógrafo dispõe para “medir” a luz. Mas o que é essencial acima de tudo isto, é saber “interpretar” essa luz! Claro que, ao falar-mos de luz, temos que nos referir às sombras projectadas pelos corpos iluminados e é do equilíbrio entre as partes luminosas e as zonas escuras, que reside muitas vezes o êxito de uma fotografia. Às sombras e às respectivas gradações dentro do claro-escuro, está reservado um papel importantíssimo na composição fotográfica, de tal modo que um fotógrafo deve saber provocar essas sombras, quer usando a luz artificial ou escolhendo a hora ideal do dia para fotografar.
Falando do outro elemento essencial da composição fotográfica – o ritmo é definindo-o como sendo o equilíbrio de pontos de interesse que faz com que a vista realize o seu reconhecimento pela fotografia, sem a deixar “descansar” demasiadamente em quaisquer desses pontos, diremos que do intimo acordo entre estas duas condições – luz e ritmo – resultará o carácter e o ambiente da composição.
Tal como há pouco afirmámos, quando nos referimos ao papel que o fotómetro exerce no espírito de certas pessoas, como único responsável no êxito de uma fotografia, diz-se, por vezes, que certa e determinada fotografia tem vida, apenas porque houve “muita sorte”, da parte do fotografo em apanhar uma série de pessoas em atitudes de franca actividade!
De certo que o factor sorte e a espontaneidade de movimentos, ajudam muito o “caçador de imagens”, mas a grande dificuldade reside, sem dúvida, em saber interpretar esse momento.
E quantas fotografias não há que apesar de serem arrancadas à vida real, não nos infundem uma sensação de vitalidade e de movimento? Por vezes um objecto estático ou uma simples linha sabiamente fotografados podem emprestar-nos uma sensação forte de movimento e um automóvel em desenfreada correria não nos provocar qualquer noção de velocidade.
Tudo depende, pois do arranjo rítmico da imagem! E como tudo na vida é ritmo, se uma fotografia não for organizada de modo a que todos os elementos de que o fotógrafo dispõe sigam esse “caminho fácil” que a vista depois percorrerá, ao ser levada por uma sucessão ordenada de linhas, a fotografia resultará fria, estática – sem vida!
Não é difícil, quando contemplamos uma boa fotografia, descobrirmos a razão porque ela nos infunde essa agradável sensação de vitalidade. Verificamos que essa fonte de energia tem origem na maneira como o fotógrafo concebeu ritmicamente a sua obra, transmitindo-nos a impressão viva de quanto viu e sentiu.
Uma vez traçado esse caminho fácil de percorrer com a vista, verificar-se-á que, através dele não se poderá construir um ARABESCO rítmico, por meio de linhas reais ou fictícias. A linha tem, por si mesma, uma grande potência de direcção e emotividade. A vertical, por exemplo, dá-nos uma impressão de grandeza; à horizontais associa-se imediatamente a ideia de repouso e tranquilidade; a diagonal é essencialmente uma linha de movimento, sugerindo acção , agitação e inquietude, enquanto que a curva nos dá uma doce sensação de graciosidade.
É, pois, através das qualidades emotivas das linhas, que podem ser sugeridas as mais diversas sensações de ambientes e estados de alma.
Análise do ritmo
Para ilustrar o que dissemos acerca do papel que o Ritmo desempenha na fotografia escolhemos três fotografias de autores portugueses, com o fim de, ante a sua representação esquemática, analisarmos a maneira como o fotógrafo realizou a estrutura da sua obra e, ao mesmo tempo, demonstrar que o “clima” criado se deve essencialmente à interpretação que o autor deu ao motivo escolhido (onde a natureza não foi mais que um simples pretexto) dispondo de uma maneira organizada os elementos constituintes da composição. Dissemos também que a linha possuía por si mesma uma grande potência de direcção e emotividade, e que era através das suas qualidades emotivas que poderiam ser sugeridas as mais diversas sensações de ambiente.
Pois bem: A sensação que nos sugere a primeira dessas fotografias que escolhemos para analisar – intitulada “Vento” – é de facto, como pretendeu o autor, o distinto amador Eng. Chagas dos Santos, a de “um dia de vento”!
É certo que um fotógrafo inexperiente, sem quaisquer conhecimentos das mais elementares regras de composição, também poderia ter fotografado este assunto. Todavia, uma vez apresentada a fotografia, verificaríamos que o ambiente criado havia sido mais um assunto de roupa estendida, confusamente disposta, e nunca o de “O dia do vento”!
Para se obter este efeito houve que se escolher o ângulo ideal para a tomada de vista, de modo a que as linhas rítmicas produzissem todo o seu efeito emotivo. Esta fotografia é um exemplo frisante de RITMO ANGULAR, conforme se pode verificar através das linhas tracejadas na sua representação esquemática. O RITMO ANGULAR determina um movimento forte, com direcção muito definida. De facto, ao olharmos para esta prova, sentimos uma sensação forte de movimento da direita para a esquerda - como que um impulso produzido por uma violenta rajada de vento.
É de notar também que todos os “pontos de interesse” desta fotografia, dispostos nesse “caminho fácil” de se percorrer com a vista (referimo-nos à diagonal dominante desta prova) “ajudam”, pelos seus ritmos angulares, a que se obtenha a sensação desejada.
Na realidade, quanto mais agudo for o ângulo mais o movimento se torna violento e incisivo, ao contrário dos ângulos abertos que nos dão a sensação dum movimento lento.
A segunda fotografia que apresentamos para exemplificar outro arranjo rítmico – RITMO EM ESPIRAL – é a prova “Homem do mar”, do autor deste artigo. Se olharmos para a representação esquemática desta fotografia, o desenvolvimento linear do seu arabesco, toma a forma de uma espiral.
De facto, a vista “entra” naturalmente pelo ombro – cuja a posição dá estabilidade à composição – seguindo depois o “seu caminho” num movimento em espiral em redor da cabeça do pescador, para se deter finalmente na borla do barrete – que marca, por assim dizer, o términos “dessa viagem”.
Por último escolhemos para fazer a análise rítmica a magnifica prova – “Dinamismo” do consagrado amador de Coimbra, David de Almeida Carvalho.
Esta fotografia, devido ao seu desenvolvimento linear, é um sugestivo exemplo de um outro arranjo rítmico, ou seja: RITMO EM HÉLICE.
O rítmico em forma de hélice dá-nos, pelas qualidades emotivas das suas linhas., uma sensação de força, excitação e movimento. De facto, se olharmos detidamente para a fotogravura da prova “Dinamismo” e em seguida para a sua representação esquemática (na qual construímos, em linhas tracejadas, o respectivo arabesco rítmico) verificamos que a nossa vista entra, naturalmente, pela parte inferior esquerda da fotografia, sendo depois levada a percorrer “aquele caminho fácil”, num impulso ascensional, com um breve momento de repouso no primeiro ponto de interesse que encontra: o elemento humano, colocado no “ponto forte” da composição. Este elemento – uma banhista que sobe uma escada - “força” o sentido rítmico da imagem, ajudando a vista a percorrer o resto do “seu caminho”.
O segundo ponto de paragem, dá-se precisamente quando os degraus do primeiro lanço de escada acabam de traçar a primeira curva. Aí, a vista já não se detém tanto tempo quando da “contemplação da figura humana”, pois num breve instante, toma como que alento, para se lançar vertiginosamente NUM MOMENTO HELICOIDAL para os outros degraus da escada, a qual, sempre uniformemente iluminada, contribui para que a vista não se distraia e continue o seu caminho, até novamente se enrolar (agora num movimento mais lento) libertando-se, por fim, ao sair pela parte superior esquerda da fotografia.