PRESS RELEASE
O guarda-roupa no silêncio do sótão, candelabros em repouso no armazém, veludos e talha dourada. A antiga sala das costureiras, o camarim do maestro, velhas oficinas e carpintarias. Entre 2005 e 2009 Paulo Catrica viajou pelo interior do Teatro Nacional de São Carlos, percorrendo espaços públicos e mergulhando na privacidade dos seus bastidores. TNSC - A Prospectus Archive é o resultado desse trabalho fotográfico, que permitiu documentar cenários, alguns dos quais deixaram entretanto de existir.
"Há um teatro por detrás do teatro". Um mundo secreto que é-nos revelado e no qual figuramos "como personagens de uma peça imaginária", descreve João Pinharanda, comissário da exposição.
TNSC - A Prospectus Archive, que está patente no Museu da Electricidade (Sala Cinzeiro 8) até ao dia 22 de Maio, surge no âmbito de uma parceria entre a Fundação EDP e o TNSC que, em 2005, encomendou a vários fotógrafos um levantamento das instalações daquele que permanece como o único teatro de ópera do país.
Abordamos estas imagens como se nos fosse possível estar nos locais que elas descrevem. Há um sentido de percurso e penetração, por um lado, e um sentido de conhecimento e posse, por outro. O percurso é pelo interior de um corpo; o conhecimento é do espaço que esse corpo define, com tudo o que ele contém. Tal espaço é evidentemente físico; mas é, também, espaço simbólico, lugar de inscrição e construção de memórias várias. Sendo assim, estas fotografias não descrevem os lugares que registam, inventam-nos.
Paulo Catrica tomou as suas imagens numa fase de transição do TNSC - quando se anunciava uma iminente e pragmática remodelação das funcionalidades de certas zonas obsoletas de trabalho face à desejada imutabilidade cenográfica e preservação histórica dos espaços públicos. A urgência documental da tarefa conduziu então o artista para os bastidores do Teatro; e tornou numericamente secundário o seu interesse pelas zonas públicas de circulação, ou seja, corredores, camarotes e frisas, balcões, plateia, boca de cena e palco.
Mas a verdade é que, talvez, no trabalho visual de Catrica, esse interesse pelas zonas não-acessíveis supere qualquer programa documental prévio; e se sustente na própria vertigem do artista pelo que se situa fora de cena, pelo não-arquitectónico, pelo não-decorativo, pelo irregular e desarrumado. De facto, independentemente dos espaços que são privilegiados nestes registos, apenas tangencialmente ou a posteriori se adequa classificar estas fotos como "documentos". O autor fala, antes, de narrativas – e as suas fotos são, sem dúvida, narrativas: carregadas ou despidas de informações dos que habitam o espaço, dos que o ocupam e modelam, dos que nele deixam marcas de excesso ou depuração, de bom gosto ou kitsch, de tranquilidade ou tensão. Porém, a derradeira narrativa é a que estrutura o próprio trabalho apresentado. É ela que inventa para nós aquilo que deveremos ver. Imagem a imagem, arrasta as sombras e abre a luz sobre as maquinarias de cena, segmenta os lugares de espera e trabalho, desmultiplica os espaços e as coisas nos espelhos, espalha as ferramentas, instrumentos, papéis… pelas mesas, matiza a luz, escurece os cantos, confronta tempos contraditórios, contrabalança a crueza, agressivamente anónima, da repartição pública com memórias que acentuam os elementos de identificação poética do lugar... É certo que toda a memória é construída e que toda a construção é uma invenção. E se a sistematização das memórias implica o seu registo e classificação, assim se chega a um arquivo que é também, sempre, construção e invenção... discurso que só a fotografia (uma exposição e um livro de fotografia) permitiriam abrir a tantas ficções.
Há um teatro por detrás do teatro, um texto que se ouve por detrás do texto, um olhar diverso, em enquadramentos de proximidade, que vê para além do olhar público, que apenas se dirige ao palco. Estando estas imagens totalmente esvaziadas de figuras humanas, é tudo o resto, os restos dessa presença obsessiva, aquilo que compõe as narrativas que nos são oferecidas. E, no mundo secreto que assim possuímos e conhecemos, somos nós a presença real destas fotos. Personagens de uma peça imaginária que encena um mundo sem função, onde tudo é pouco óbvio, onde o espaço penetrado e percorrido quase não nos permite recuo, nem do campo de visão nem da experiência do tempo. É isto que garante, para todo aquele passado, um presente perpétuo; e, para todos aqueles espaços obstruídos, a clareza final de quem vê uma sala de talha dourada e veludos pesados onde o mundo inteiro parece poder resolver-se em representação e música.
João Pinharanda
Paulo Catrica, nasceu em 1965, Lisboa. Estudou fotografia no Ar.Co., licenciou-se em História na Universidade Lusíada e o Mestrado em Imagem e Comunicação no Goldsmiths College, em Londres. Frequenta actualmente, como bolseiro da Fundação da Ciência e Tecnologia, o programa de doutoramento em Estudos de Fotografia da Universidade de Westminster, em Londres.
Desde 1997 desenvolve um interesse particular pela fotografia de paisagem urbana, em particular por espaços periféricos e/ou suburbanos, persistindo no seu trabalho a ideia de associar arquitectura (objecto) com o contexto evolvente e o uso quotidiano.
Expõe e edita regularmente em Portugal e no estrangeiro desde 1998. Foi nomeado para o prémio BESPhoto (2005). Das exposições individuais recentes destacam-se No Ruses so to Speak na Galeria Quadrado Azul, Lisboa (2008) e H08 no Silo, Porto (2009). Concluiu recentemente projectos de encomenda para a Photographers Gallery, Londres (2009) e para a Casa das Histórias Paula Rego (2009). Desenvolveu um projecto comissariado por Greg Hilty, curatorial director da Lisson Gallery, para uma residência artística no arquipélago das Galápagos (2010).
MUSEU DA ELECTRICIDADE
Avenida Brasília - Central Tejo
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