A morte de Simão
por VASCO GRAÇA MOURA
Retrato de Camilo Castelo-Branco
CDV, albumina, fotógrafo Horacio Aranha
Colecção Ângela Camila Castelo-Branco e António Faria
Estão em curso as comemorações dos 150 anos da publicação do Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco, em 1862. Há várias entidades envolvidas num programa multidisciplinar: a Casa de Camilo em S. Miguel de Seide e a Câmara Municipal de Famalicão, a Câmara Municipal do Porto, o Plano Nacional de Leitura, a Faculdade de Letras de Lisboa, a Universidade Fernando Pessoa, o Centro Cultural de Belém, o Centro Nacional de Cultura, escolas do secundário, alguma comunicação social incluindo o DN, uma série de especialistas e de não especialistas, gente do cinema, da música e das artes plásticas, etc., etc.
Um dos objectivos evidentes de tais celebrações é o de interessar os jovens nos grandes nomes da nossa literatura, reabilitando a relação da escola com os clássicos e com o que eles significam para a cultura e para a língua portuguesa, despertando a atenção para a sua obra e tornando mais estimulante o contacto com ela. Espera-se também que esse conjunto de iniciativas atraia saudavelmente o grande público.
Falar do Amor de Perdição traz à baila o Romantismo e faz reflectir na maneira como Camilo optou por um desfecho que não corresponde à verdade histórica. Simão Botelho não morreu em 1807, a bordo do navio em que tinha embarcado para o degredo. Aportou à Índia, havendo notícia da sua presença em Goa no ano seguinte. Sobre a existência que levou naquelas paragens, escreveu Mário Cláudio excelentes páginas de ficção na parte final do seu Camilo Broca.
Camilo inventa portanto a morte trágica do tio. Se, no Amor de Perdição, o herói tivesse seguido para a Índia e ali acabasse a viver como um nababo, não estaríamos perante a lancinante obra-prima do Romantismo português, mas sim perante uma aproximação à escola realista, em que a veemência das paixões juvenis acabasse neutralizada pela comodidade de um aburguesamento colonialmente instalado, com mais ou menos cinismo das personagens sobreviventes.
As relações entre a ficção literária e a história são complexas e podem suscitar uma série de questões muito interessantes. Se Simão Botelho não morresse depois de embarcar, deixava de haver razões romanescas para o suicídio de Mariana. Esta figura, com toda a probabilidade inventada por Camilo, carecia da morte de Simão para, dentro da lógica narrativa do desvario passional em que se encontra, ser levada a pôr termo à vida, atirando-se ao mar. A própria lógica interna da construção ficcional de tanta abnegação desesperada acabaria por impedi-la de seguir viagem. Nesse encadeamento arrebatado e trágico, Camilo tem de fazer morrer Teresa de Albuquerque para fazer morrer Simão e tem de fazer morrer Simão para fazer morrer Mariana.
Para isso, não hesitou em alterar os dados factuais de uma história de família que certamente conhecia. Na eficaz economia narrativa de que lança mão, encontrou essa solução expeditiva em que morre toda a gente, a culminar uma aura de pathos crepuscular e trágico.
O caso não era único. Tinha o precedente ilustre e recente de outra obra-prima do Romantismo português. No Frei Luís de Sousa, o acto por que Manuel de Sousa Coutinho pega fogo às suas moradas em Almada é apresentado como rasgo de provocação patriótica aos governadores filipinos, durante a ocupação espanhola. Ora sabemos que Sousa Coutinho, depois do gesto incendiário a que terá sido levado por uma questão pessoal com aqueles (e que ele mesmo descreve num poema em latim), se deslocou a Madrid, para se acolher à protecção real de Filipe III, a quem dedicou em 1600 as obras coligidas de Jaime Falcão. E ali terá permanecido dois anos. Garrett não hesitou em ajustar a História às suas conveniências dramáticas, justificando teoricamente esse entorse.
Mas Garrett pretendia falar da ruína e da decadência do país, bebendo temas educativos para o povo na história nacional, mesmo virando-a do avesso e sacrificando às musas de Homero o que devia às de Heródoto. Por sua vez, na linha das grandes paixões trágicas, como as de Tristão e Iseu, Paolo e Francesca, Romeu e Julieta, Camilo investia toda a sua arte numa história de amor tresloucado em que, como era evidente, propunha aos leitores vissem um convincente eco moderno daquelas tragédias e uma sombria metáfora, levada até às últimas consequências, dos seus tumultuosos amores com Ana Plácido.
Na ficção, e embora sob invocação expressa da veracidade dos factos, tanto a história nacional como a história individual podem, afinal, sofrer desvios radicais que são decisivos, em nome da arte literária e da superior verdade artística que esta propõe.
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